Vírgula
Janeiro 29, 2024
Estamos no fim de janeiro e a “Quinta Dimensão” exibe, há mais de um mês, a complexa mensagem de “Boas Festas”.
Pode dizer-se que o seu autor é preguiçoso. Sim pode dizer-se. Mas, por outro lado, pode ser a tentativa do mesmo em esticar a magia da enigmática mensagem até às fronteiras da Páscoa. Nessa altura, depois de uma travessia na aridez do deserto, o blog ressuscitaria e, envergando uma renovada e iluminada roupagem, derramaria, sobre o mundo, um manto de conhecimento e consciência que elevaria a humanidade ao Tipo III na escala de Kardashev.
Descendo à terra…
É apenas falta de ideias, de inspiração e bagagem intelectual. Sinto-me um velho carro a tossir um ou dois pulmões, através do Parkinson de um carburador ressequido e pré-histórico.
Noto a mente cansada e, cada vez mais, o processador de texto sublinha mais palavras com um ziguezagueado vermelho. Nem sempre tem razão, mas não poucas vezes tenho que lá ir emendar o erro ortográfico. Ainda, outras vezes, o computador já não tem paciência e coloca, sem aviso prévio, o acento na palavra que seguia em pé. Depois há as vírgulas, que me parecem peças de Lego estragadas que não encaixam bem em parte nenhuma. Sinto, também, um cansaço na alma, se é que tenho uma, seja lá o que isso for.
A minha filha tem andado a escrever pequenas histórias e é engraçado sermos puxados para os mundos imaginários das crianças. Na sequência, lembrei-me de um conto que escrevi em 2007 e de como era ingénuo.
Acho que nunca mais vou conseguir escrever um texto decente ou com mais de uma página. Muito menos algo parecido com aquela treta:
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O Encantador de Serpentes
Esta história nunca aconteceu. Passou-se em terras do oriente mas poderia passar-se em outro qualquer lugar. Passou-se há centenas de anos atrás mas poderia, perfeitamente, acontecer hoje. Narra a ventura de um homem especial mas poderia, também, ser a história de um qualquer homem comum.
Era uma vez um homem humilde que habitava um modesto casebre com a sua esposa. Viviam sós e não tinham filhos, porque a mulher era estéril, mas o amor que os unia era fecundo. Um era o tesouro do outro e, nessa perspectiva, como poderiam ser pobres? As dificuldades eram grandes mas, para quem ama, nunca são maiores que o coração. Apesar dos escassos recursos materiais pode dizer-se que viviam felizes.
O que tornava este homem especial era a forma como ganhava o pão do dia-a-dia. Quando jovem, vagueou com seu pai por terras longínquas, numa jornada em busca do auto-conhecimento e das riquezas interiores. Passou por países como a Índia, o Nepal e a China, chegando mesmo a alcançar a longínqua fronteira da Mongólia. Foram anos difíceis mas, por aquilo que aprendeu, só poderia ter consigo um sentimento de gratidão. Durante essa extensa viagem, estiveram acampados durante largos meses, numa remota localidade Indiana, onde conheceram um velho brâmane errante que sabia dominar as serpentes. Para dominar uma serpente – dizia ele – é preciso entender que o homem e a serpente fazem parte de um todo: o Absoluto. Assim, com meditação, o homem e a serpente deixam de ser dois seres para se tornarem um. Dominar a serpente era, dessa forma, tão fácil como dominar um dedo ou um braço. Para além do encantamento, o brâmane era entendido na arte de lidar com as mordeduras e os respectivos venenos. Adquirira uma estranha imunidade e afirmava que o veneno é apenas uma parte da vida, da mesma forma que também a morte é uma parte da vida. Há vida no veneno, só é preciso saber procurar. O velho habitava esta terra material mas comungava com outros mundos invisíveis que compõem o Absoluto. Era, apesar de humilde, muito instruído e um excelente professor. Não demorou muito, por isso, até que passasse para o homem a sabedoria e os conhecimentos que permitiam encantar serpentes e enganar a morte na forma dos seus mais variados venenos. Assim, o ganha-pão do homem, agora mais velho, consistia em sentar-se na praça central e exibir o seu talento aos mais curiosos a troca de algumas moedas. Enfeitiçava serpentes e fazia-as dançar, numa maneira de ganhar a vida como outra qualquer. De quando em vez, porém, quando o dinheiro para comer escasseava e o público se mostrava mais generoso, deixava-se ser mordido por elas, e foi ganhando fama como o homem que conseguia enganar a morte.
Um dia, a história do homem que resistia aos venenos, chegou aos ouvidos do Vizir. Como este se encontrava em vias de organizar uma festa no palácio real, decidiu convoca-lo para servir de principal atracção. Havia, no seu palácio, um grande jardim zoológico onde habitavam alguns dos mais exóticos animais dos quatro cantos do mundo. Pediu, portanto, que fosse escolhido e preparado o espécime mais venenoso, de modo a que a sua toxicidade fosse experimentada no homem. A história soava-lhe a boato mas seria, com certeza, um número circense diferente do habitual e iria muito certamente agradar aos seus ilustres convidados estrangeiros. O humilde homem não podia negar um pedido tão honroso do Vizir e prontificou-se a servi-lo de acordo com a sua inquestionável vontade.
*** Passaram poucos dias, até que esse dia chegou por fim. ***
A festa estava animada mas havia uma certa ansiedade dos presentes para assistirem à grande prova do veneno. Gradualmente foi-se formando a respeito um enorme burburinho entre a multidão. Uns diziam que era impossível resistir aos venenos, enquanto outros asseguravam que não, que era possível em alguns casos. Outros, ainda, diziam que até podia ser possível resistir a alguns venenos mas não ao veneno do espécime peçonhento que aguardava. Então, quando o burburinho se transformara em gritaria, uma voz seca de trovão anunciou a chegada do Vizir que, por sua vez, disse de imediato:
- Hoje vai saber-se, se o homem que se encontra de pé à minha frente, é um homem de bem, abençoado pela sabedoria dos Brâmanes, ou se, pelo contrário, é um impostor que quer enganar o povo para proveito próprio. Este homem vai ser testado de forma que não restem dúvidas sobre o que apregoa. Se for realmente imune ao veneno farei dele um sábio da minha corte e ouvirei os seus ensinamentos. Porém, se nos estiver a enganar e não sobreviver, a sua bela esposa, que se encontra a seu lado, será executada para que este dia sirva como exemplo a todos os desonestos. Que comece a prova!
- A Mamba negra é a serpente mais venenosa do continente Africano. Caso não seja tratada de forma célere, a vítima da sua mordedura fica paralisada e muito dificilmente escapa a uma morte agonizante. Se este homem se mostrar imune ao veneno é, sem qualquer margem de dúvida, um homem santo. – Assim disse, com uma voz grave, o experiente tratador dos animais, responsável pela escolha de tão exótico espécime.
Foi pedido ao homem que estende-se o braço direito e afastasse o manto que lhe ocultava a pele. A serpente, agressiva por natureza, foi aproximada e desferiu duas rápidas mordeduras, injectando grande quantidade de veneno. Nunca o homem esteve sujeito a tal veneno e em tão grandes quantidades. De repente os seus joelhos dobraram-se tendo, de imediato, prostrado o olhar no chão. A esposa abraçou-o e assim ficaram, agachados, enquanto todos no salão tentavam espreitar mais alto para saciarem a curiosidade mórbida inerente ao ser humano.
Faz parte de um todo: a serpente e o homem, o veneno e o sangue. A morte e a vida. O Universo diz-nos que para tudo é preciso um oposto, afim de haver um equilíbrio. Como pode o homem dar real valor à vida se não tiver consciência da sua morte. O que ao homem comum parece caos, ao sábio parece lógico. Porque, continuamente e de forma renovada, os equilíbrios desequilibram-se e os desequilíbrios equilibram-se, numa contribuição para o equilíbrio maior. O sábio não olha os acontecimentos como elementos isolados mas, antes, como parte integrante de um grande processo. Mantém a equanimidade porque, para além do relativo, estuda as propriedades do Absoluto. É um geómetra que sabe ler, interpretar e compreender os sinais do Universo pois eles são, por si só, uma linguagem própria. O verdadeiro sábio é humilde e com humildade se levanta e diz ao Vizir:
- Perdoe, Vossa Majestade, a minha ausência momentânea. Precisei de meditar porque, com tanta agitação, desuni-me momentaneamente do Absoluto. Mas agora estou bem e às ordens de Vossa Eminência.
O Vizir, convencido e convertido, decretou que, doravante, o homem deixaria de ser pobre. Por mérito próprio conquistara um lugar de sábio na sua corte. Iniciaria as suas novas funções logo no dia seguinte. E a festa continuou, noite dentro, com grande animação até de madrugada.
***
No dia seguinte o homem não apareceu. Estranhando a ausência, do agora sábio, o Vizir enviou dois mensageiros ao casebre para se inteirarem do porquê da respectiva demora. Apesar de ser experiente e vivido, não conseguia disfarçar algum nervosismo, enquanto vários pensamentos o desassossegavam. Algumas horas depois chegaram os servos, regressando cabisbaixos.
- Então, o que se passa? – Perguntou, inquieto.
- Vossa Majestade: as novas que trazemos estão, infelizmente, carregadas de trevas… O homem e a respectiva esposa morreram envenenados. A esposa encontrava-se deitada sobre o leito, enquanto o homem jazia suspenso numa forca improvisada.
- Não estás a ser coerente! – Afirmou o Vizir com surpresa e ferocidade – Como podes afirmar que o homem morreu envenenado e, logo a seguir, dizeres que estava suspenso numa forca? E como poderia o homem morrer envenenado se, ainda ontem, se mostrou capaz de resistir a um dos venenos mais fortes conhecidos pela humanidade?!
- Bem, Vossa Majestade, o pobre homem deixou uma carta…
A carta tinha inscrita a seguinte mensagem que o servo passou a ler em voz alta:
“ Parece, Vossa Majestade, que não vai ser possível apresentar-me no palácio para ter a honra de lhe transmitir os ensinamentos que, um dia, outros sábios me passaram a mim. Porém, quando terminar de ler esta mensagem, espero que possa apreender o maior ensinamento de todos. O ensinamento que supera todos os outros.
Ontem, após terminada a festa em que muito me honrou participar, eu e a minha esposa pusemo-nos a caminho de casa. A meio da caminhada uma serpente, esgueirando-se de surpresa e de forma rápida por entre a seara, mordeu-lhe com gravidade um calcanhar. O resultado foi uma morte em agonia nos meus braços, não podendo eu fazer nada para o evitar. De todos os venenos do mundo, este era o único para o qual não estava preparado, pois não fora directamente dirigido a mim. Fui para casa, carregando-a nos braços e, quando lá cheguei, deitei-a sobre a cama. Olhei para ela ali, inanimada, enquanto dormia um sono perpétuo, e tamanha angústia fez com que deixasse de me sentir parte de um todo. Senti-me, tão-somente, parte de nada. Bem ou mal decidi, nesse momento, que queria seguir os passos do amor da minha vida e partir pelo mesmo caminho que ela havia tomado. Decidi que tinha de a procurar e, portanto, lançar-me à maior expedição da vida… Se a vou encontrar? Quem sabe?... Mas a pergunta a fazer não será tanto essa. Essa é uma pergunta que unicamente a mim diz respeito. A pergunta relevante será, Vossa Majestade: qual o maior ensinamento que lhe posso deixar? …”
Aqui, o servo deteve-se e, comovido, preferiu entregar o escrito ao Vizir. Este segurou a carta e leu o ensinamento em silêncio, enquanto uma lágrima lhe percorria os contornos do rosto.
Era um homem que se unia às serpentes para não morrer, mas era o facto de estar unido ao amor da sua vida que o fazia viver. Era um homem sem nome porque, talvez no fundo, fosse um homem comum. Era um homem que habitou um passado longínquo mas, ainda hoje, o seu derradeiro ensinamento parece verdadeiro. Era, também, um homem de terras distantes mas com uma história que toca de perto os nossos corações. Era um homem que, de facto, morreu envenenado. O que estava escrito, no final da carta, foi transcrito para o final deste conto:
“O maior veneno para o homem é a falta de amor”.
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