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Quinta Dimensão

miF

Março 21, 2025

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Ontem, 22 horas e uns salpicos de chuva no para-brisas. Por entre o breu da noite, a couraça cinzenta e fustigada da carrinha, vai abrindo caminho até casa. Embora as mãos repousem sobre o volante, não precisa que a guiem, pois conhece bem o trajeto. É uma vida de repetições e alguns momentos de ilusão. Não resta grande margem para enganos.

Os olhos fixos num horizonte, algures entre a realidade e pensamentos dispersos, absorvem, com apática indiferença, os fracos pontos de luz que se vão desenhando. Noto, por entre as sombras, o frio dos fantasmas a vaguear. Estados de alma que descansam na permeabilidade dos ossos, que se esforçam por sustentar o peso do sono. Por fim, o processo espiritual desagua nas memórias, na saudade e nostalgia de outros tempos e escorre até à inevitável desilusão.

Nunca fui uma pessoa com propensão para a sociabilização e sinto até uma espécie de fobia, ou pelo menos um certo mal-estar, quando tenho que estar em situações sociais. Com mais ou menos dificuldades, vou conseguindo disfarçar – às vezes mal - essa inaptidão, mas é certo, também, que evito a todo o custo esse tipo de situações. Situações sociais começam, para mim, no momento em que estou com alguém e, desde o divórcio, divorciei-me de reparar o eu que ficou destruído. Porque não sei se o consigo fazer e, tão-pouco, se o quero fazer. Porque dei tudo de mim e fiquei vazio, apenas inflado de tristezas. Porque me sinto acabado, inutilizado, ou mesmo inútil, e nem a mim me consigo vender. Porque, por princípio, não gosto de enganar ninguém.

Desde a separação, mudei muito. Muito mais do que poderia supor ou imaginar. Mudei na forma de pensar e sentir as coisas. Fruto da minha educação, era um homem de fé, crente num Deus omnipresente e omnisciente, na existência de um Amor universal, capaz de transcender o infinito e até no livre arbítrio e na capacidade de fazermos escolhas dentro de um plano maior que pudesse dar sentido à existência. Cheguei a acreditar que o Universo poderia conspirar a nosso favor e noutras narrativas com que Paulo Coelho enriqueceu o seu “Alquimista” ou o “Manual do Guerreiro da Luz”. Cheguei a comover-me com a história de Hermann Hesse, sobre o brâmane “Siddhartha”. Inspirei-me nos heróis dos manuscritos da Bíblia e na palavra de Deus, escrita pelos homens. Acreditei em mensageiros divinos e nas construções de uns poucos filósofos. Confiei no amor que, ingenuamente, acreditei que seria para sempre. Procurava até encontrar-me, seja lá o que isso for, mas – para o bem e para o mal – foi objetivo que nunca consegui alcançar. Hoje evito, a todo o custo, encontrar esse gajo. Não que, ao dia de hoje, seja uma melhor pessoa, apenas um asqueroso diferente.

Não sei se Deus existe, ou se existiu. Se, no alto de um penhasco divino, há alguém preocupado com a nossa pequenez e micro-estupidez. Não sei se a morte nos evolui para seres de luz e muito menos qual a cor dessa luz, ou se regredimos para renascermos em insetos pouco apetecíveis. Não sei nada. Dentro de todas as incertezas, o menos incerto, é que talvez nunca saberei. Deus, seja qual for a forma com que o pintemos, é um porto seguro, para nos refugiarmos dos medos e encontrarmos algum conforto. Serve para enfrentarmos a nossa finitude e insignificância perante a escala de grandeza que nos rodeia. Já o Amor, como conceito universal e perene, parece ser algo criado para nos inspirar e poder conduzir à superação. Algo que, em última análise, por entre quaisquer que sejam as dificuldades ou ódios, conduzirá ao triunfo do “bem” sobre o “mal”. O Amor como um catalisador da vida que irá potenciar a resolução de discórdias, a união de casais, de famílias ou, mesmo, da humanidade. O Amor como ferramenta para vencer a dor, a solidão e a morte. Parece-me tão lógico que a humanidade, pelo sentimento de abandono, de medo do desconhecido e da guilhotina do tempo, tenha criado histórias para tentar dar algum sentido a toda estra desagregação e frio. Parece tudo muito mau e sombrio, mas é muito possível que esta minha visão esteja errada, da mesma forma que eu nunca estive certo. É, no entanto, aquilo que sinto como menos mentiroso dentro no meu interior e não gosto de enganar ninguém, a começar por mim.

Vejo-me como uma pequena peça, de um puzzle gigante, que não consegue encaixar. Sinto, dentro de mim, uma grande dor, que não consigo apagar. Questiono-me como alguém, que tinha demasiadas certezas, conseguiu acabar com tantas dúvidas. Penso que o que não nos mata, não nos torna mais fortes, apenas diferentes. Sinto que tinha ilusões e princípios a mais e que, talvez por isso, após o divórcio, fui eu que fiquei na lama… e ainda falo disso. Hoje tenho menos ilusões, muito menos certezas e ainda menos princípios.

Para acabar esta lamechice que já me enjoa, talvez sobre um princípio. Algo menos desonesto, como: não fazer aos outros o que não quero que me façam a mim e, se possível, fazer o que gostava que fizessem por mim. Mas duvidar, sempre duvidar! Porque os princípios podem, muito bem, ser o nosso fim.

Fatos e Factos

Março 02, 2025

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Retirando da equação óbvias situações clínicas, a maioria das pessoas consegue formular opiniões. As opiniões que formamos são, em grande parte, moldadas pela informação (e desinformação) que recolhemos, pela forma como a processamos e como as interações sociais, nas suas mais variadas formas, vão acentuar ou alinhar distorções. Há opiniões que formamos com algum desprendimento, que requerem parco investimento de tempo, pensamento e ponderação e que conseguimos mudar com relativa facilidade. Há, no outro extremo, opiniões em que, tão-somente, não conseguimos conceber a hipótese de mudar e até as categorizamos como convicções. Análises formadas sobre a recolha de muitos dados, de várias fontes reputadas, em que esses mesmos dados e fontes são filtrados e contrapostos, discutidos por mais que um indivíduo com mente aberta e independência, posteriormente amadurecidos e interpretados, tendem a produzir opiniões consistentes e menos propensas à súbita mudança. Mas existe um “perigo” escondido pois, da mesma forma, podemos ter opiniões bastante rígidas porque, simplesmente, por falta de oportunidade, medo, conformismo ou até preguiça intelectual, não as expomos ao contraditório e, facilmente, acabamos com convicções tantas vezes desalinhadas com a factualidade. É por isso que, pessoalmente, tenho como primeira convicção, a dúvida. Como segunda convicção, a certeza… que provavelmente estou errado.

 

Se formular opiniões está ao alcance de quase todos, exprimi-las está restrito a um número de pessoas substancialmente menor. Nesta pequena esfera imperfeita, que serve de abrigo à humanidade, nem todos os regimes permitem a chamada “Liberdade de Expressão”. De onde estou a escrever ainda usufruímos de alguma liberdade, que permite, inclusive, que muitas pessoas exprimam opiniões que defendem regimes autoritários. Aqui, se escrever algo que alguém considere ofensivo ou impróprio, corro o risco de ser “cancelado”, mas há regimes em que pessoas que se aventuram a exprimir opiniões disruptivas em relação aos cânones permitidos, são punidas com a própria vida. Apesar de a Europa estar repleta de problemas e imperfeições, alberga valores que, pelo menos, merecem que alguém os defenda e lute por eles. O que aqui escrevo é apenas e só a minha opinião. Não vale muito, tem pouco peso e é só mais uma. Não escrevo porque achei que devia falar, mas antes, porque achei que não me devia calar.

 

Antes de discorrer sobre o que, a 28 de fevereiro de 2025, se passou na Sala Oval da Casa Branca, entre o presidente da Ucrânia e o presidente e vice-presidente dos Estados Unidos da América, devo dizer que não sei se existe algo como uma verdade, mas temo que possam existir muitas mentiras. Seguramente não sou dono de nenhuma verdade e a minha opinião é formada com base em artigos que li e vídeos que vi. Posso estar completamente equivocado, mas esta é a análise que, até hoje, me oferece menos dúvidas.

 

Sem me querer alongar muito sobre o assunto, existe um prólogo que não convém ignorar. J.D. Vance esteve na Europa e trouxe, consigo, “reflexões” que, gentilmente, partilhou sobre falta de liberdade de expressão no continente Europeu. Entretanto, Donald Trump ameaçou os tradicionais aliados com tarifas económicas e a posição dos EUA na NATO, encetou negociações de paz, com a exclusão da Ucrânia e da Europa, elogiou, continuamente, Vladimir Putin, enquanto apelidou Zelenskyy de ditador e, por fim, afirmou que a Ucrânia foi responsável pelo início da guerra. Não pretendo questionar a política económica e a legitimidade da estratégia de alianças do EUA, mas sobre o facto de a Ucrânia ter sido responsável pela abertura das hostilidades e de Vladimir Putin ser mais democrático que Volodymyr Zelenskyy, remete-me para “1984” de “George Orwell”:

 

«E, se toda a gente aceitava a mentira que o partido impunha – uma vez que todos os registos a repetiam -, então a mentira passava à história e tornava-se verdade. “Quem controla o passado”, dizia o lema do Partido, “controla o futuro: quem controla o presente controla o passado”. E, no entanto, o passado, embora modificável por natureza, nunca fora modificado. O que era verdade hoje era verdade desde sempre e para sempre. E era bastante simples: bastava uma sucessão de vitórias sobre a nossa própria memória. “Controlo da realidade”, era como eles lhe chamavam, ou, em novilíngua, “duplipensar”.»

 

Naquela sala, vi um homem, que representa um país encurralado. De um lado está a ser atacado e invadido por uma potência que extermina os seus cidadãos. Tortura os homens, viola as mulheres e rapta as crianças para as "reeducar". Do outro lado tem, agora, dois Golias, com os rostos carregados de maquilhagem, que representam uma outra potência que, no espaço de pouco mais de um mês, passou de aliado para simpatizante do inimigo. Em cima da mesa está, na forma de extorsão, a escolha entre abdicar de parte significativa do seu futuro, com a assinatura de um acordo leonino, ou ser abandonado para morrer aos pés do inimigo. Se assinar o acordo, não há garantias. De resto foi montado um cenário e criado um guião para que o público pudesse usufruir de um bom espetáculo televisivo. Degradante, mas um bom espetáculo televisivo. O paradoxo é que se falou-se muito de paz, mas o cenário foi de guerra. Se a operação especial de Vladimir Putin não foi concluída em três dias e a paz de Donald Trump não chegou em 24 horas, a culpa só pode ser, por certo, do ingrato Volodymyr Zelenskyy que não aceita a paz que, com tanta benevolência, lhe foi oferecida.

 

Apenas conheço os intervenientes pelo que leio e vejo nas notícias e Volodymyr Zelenskyy terá, por certo, muitos defeitos que lhe poderão ser apontados. Da mesma forma, Donald Trump e James David Vance também terão as suas virtudes, mas servindo-me da minha falível perceção, pareceu-me, claramente, que Volodymyr Zelenskyy estava bastante mais alinhado com o imperativo categórico de Immanuel Kant e os restantes com a filosofia de Al-Capone. O dinheiro e o poder também não parecem ter uma relação direta com a educação e o tato ou sensibilidade diplomática. Já depois de dizer que Zelenskyy deveria estar calado, porque já tinha falado demais (J.D. Vance, desta vez, não se preocupou com a liberdade de expressão), Donald Trump menciona: “Demos-lhe, através do presidente estúpido, 350 mil milhões de dólares”. Pelo que li, os números não parecem corresponder aos factos e, independentemente de o "estúpido" ser dirigido a Zelenskyy ou Joe Biden, é de um nível muito baixo.

 

É claro que Zelenskyy e o povo ucraniano querem garantias. Vamos supor o cenário surreal, em que um criminoso invade a nossa casa com o objetivo de a desnazificar, mata uns amigos ou familiares e passa a viver num dos quartos. Porque não o conseguíamos expulsar e não temos para onde fugir, fazemos um acordo para que a invasão cesse por ali. Uns tempos mais tarde, depois de muita apreensão, medo e ameaças, ele toma conta da sala e mata mais uns amigos ou familiares. Como podemos fazer um novo acordo de paz, sem que uma autoridade dissuasora construa uma barreira que garanta que ele não volta a matar e ocupar o que falta da casa?

 

É muito fácil ser forte e bater nos fracos. Donald Trump parece tecer uma especial admiração por poder, dinheiro e ditadores. Admito que muitas pessoas tenham opinião diferente, mas esta é minha. Vi um homem e chefe de estado ser enxovalhado e humilhado por dois homens que cresciam, em confiança e arrogância, na medida e proporção em que batiam na sua vítima e abriam receios no povo que ali estava representado. Nesse sentido, não me ocorre nada mais oportuno que a afirmação de John Stuart Mill: “É melhor ser um humano insatisfeito do que um porco satisfeito”. Acredito que, se estivesse vivo e lhe pudesse perguntar, o mesmo concordaria com a extensão para dois porcos.

 

Claro que, para um grande número de pessoas, Donald Trump é uma espécie de deus e J.D. Vance, talvez, um semi-deus e tudo o que fazem é cegamente aceite e será sempre, sem mácula de dúvida, o mais correto. Esse fenómeno poderá ser explicado por exemplo, mas não só, pela teoria da estupidez elaborada por Dietrich Bonhoeffer. Infelizmente, essa mesma teoria, defende que a estupidez é mais perigosa que a maldade e é possível que ninguém esteja imune. Tenho a esperança de que, por esta altura, não esteja a ser estúpido, mas sei que é difícil ter noção da própria estupidez.

 

Vladimir Putin é um líder que foi sufragado através de eleições e há quem consiga dizer que na Rússia existe um regime democrático. Na mesma medida, muitas pessoas não podem discordar: porque têm receio, ou porque foram atingidas por uma epidemia de morte súbita que costuma afetar, sobretudo, os opositores do regime. Ao lado, a Europa parece ter cometido, ao longo dos últimos anos, uma série de erros de avaliação estratégica e as suas democracias enfrentam um presente e futuro com desafios muito relevantes. Perigos, como imigração descontrolada, extremismos, ameaças diretas e indiretas de interferência nos processos democráticos, perpetrados por potências estrangeiras, ameaças económicas, culturais e sociais, alterações climáticas e, claro, o belicismo ditadores com visões imperialistas. O modo de vida europeu encontra-se seriamente ameaçado e o futuro esconde-se atrás de uma cortina de névoa. Mais do que nunca é preciso lutar pelos valores que nos definem, de modo a que as próximas gerações possam respirar livremente.

 

O conhecido “Relógio do Juízo Final” está pertíssimo da meia-noite. Acredito que é porque, essencialmente, para construir algo é necessário o esforço de muitos e, infelizmente, para destruir basta a estupidez de um.

 

A dada altura, um "pseudo-jornalista" interpela Zelenskyy e questiona: “Porque não usa um fato?”.

 

A resposta não foi má, mas poderia ter sido:

 

- Não é o fato, estúpido! O que importa são os factos.

Maestro

Julho 13, 2023

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Tenho mais recordações da infância que do dia de ontem. Talvez porque, em determinada altura da vida, dei por mim a tentar esquecer mais do que queria lembrar. Ainda assim, são memórias com quarenta anos. E, com tanto tempo passado, os fungos da imaginação, ou os engodos da mente, corroem a pureza dos factos, até que as certezas se tornam incertas e as lembranças se esfumam ou se confundem. O que não se esqueceu, funde-se e reconfigura-se com realidades alternativas. Às mãos de uma mente dispersa, a realidade pode ser extremamente porosa ao reino da ficção. Assumo, portanto, que ao procurar lembrar, corro o sério risco de cometer graves imprecisões.

 

Na praceta, protegida pela estátua do Soldado Desconhecido, desaguam quatro caminhos que se encontram num caprichoso cruzamento. O saudosismo da Rua Guerra Junqueiro, que parece extraído das velhas minas de São Pedro da Cova, passa o testemunho à Doutor Severiano que, logo de seguida, o perde na Carvalha. Na perpendicular, a infindável Avenida General Humberto Delgado, que brota do centro de Gondomar, banha o colégio dos Capuchinhos e rende-se, por fim, ao paralelo da Rua do Valado, que aponta ao pavilhão de Hóquei. Do lado direito do Soldado e sob proteção da sua G3, está a decrépita mercearia do Senhor Alberto e da Dona Odete.

 

Antigo casebre mercantil, recebe os escassos clientes, com uma pequena porta e uma breve escadaria. Meia dúzia de passos em frente, sobre um chão avermelhado, oculto por alguma sujidade e muita erosão, um curto balcão em mármore, com a altura da cintura de um adulto médio. Assenta sobre um móvel de madeira comprido, que incrusta uma janela em vidro, para exposição de broa de milho e afins. Na extremidade esquerda, para quem entra, o móvel exibe uma abertura e, sobre ela, a mármore dá lugar a uma espécie de ponte levadiça em madeira, por onde apenas o Sr. Alberto e a D.ª Odete têm permissão de passar. Sobre o mármore assenta uma balança de pratos, de um branco, tão pretérito, que se converteu ao sépia. Ao lado da balança, uma ninhada de pesos enferrujados e, logo a seguir, uma vitrina claustrofóbica, pouco maior que uma caixa de pão. Dentro da caixa de vidro, uma parca variedade de pastéis. Os bolos abrigam-se de um bando de moscas que, desprovidas de mais nobres sentidos, gastam a vida a voar em círculos. Do lado de lá do balcão repousam, guarnecidos por manguitos, os braços lentos do Sr. Alberto, que se juntam aos papéis rabiscados por contas de ocasião e livros razão, com as dívidas dos fregueses que só compram fiado. O velho merceeiro é meu amigo, mas obriga a minha mãe a recordar-me de forma veemente, sempre que me envia a fazer recados, que não quer o troco em rebuçados. Atrás do seu corpo pesado, uma porta de duas abas, encerra todo um manancial de produtos, que se escondem dos olhares de pessoas estranhas ao serviço. Muitos são artigos desconhecidos. Alguns estão esquecidos, debaixo de uns outros, inacessíveis. Só aparecem quando são expressamente pedidos por alguém informado. Outros, ainda, jamais verão a luz do dia. Do lado de cá, à direita da entrada, mais ao fundo, uma montra generosa dá para a rua. Ostenta meia dúzia de brinquedos, cuja cor fora já carcomida pelo Sol e recebe os raios de luz, que se prolongam até uma pequena mesa no canto. A luz alumia-lhe o verniz estalado que, à vista desarmada, falhou em proteger os veios e os nós da madeira. Um pequeno banco manco, que se esconde sob a mesa, é o lugar cativo que, todos os dias úteis das semanas inúteis, é religiosamente reclamado pelo Serra.

 

Serra, só de nome, porque é um homem de estatura média e aspeto franzino. Deve ter os seus 50, mas os problemas de saúde fazem com que pareça mais velho. Dizem que só tem um pulmão e que, por estar tão dependente da bebida, um dia apanhou uma congestão por beber água. Mas o povo é um pródigo criativo, capaz de inventar merdas que não lembra ao diabo. Veste uma gabardina leve, bege, que lhe confere um ar de inspetor. Os óculos, com lentes garrafais, elevam-no a um patamar de intelectualidade, apenas desfeito por lamentos entre goladas de Aldeia Velha. Uma boina, em bombazina, num padrão de quadrados e matiz castanhos, completa a indumentária e dá-lhe uma certa altivez, uma nobreza intrínseca que emana dos perdidos. A memória não permite que me recorde de uma única palavra que o Serra tenha dito, mas guardo-o, para mim, como um poeta. Não esqueço que tolerava e simpatizava com um pirralho travesso e, do pouco que conheci, parecia ser um homem bom, possivelmente com boas palavras.

 

Mais ou menos a meio, o pequeno copo de bagaço exibe uma ténue linha azul, possivelmente com o intuito de recomendar uma dose que não deve ser excedida. A recomendação não passa disso mesmo e, depois de alguns copos excedentários, o Serra sai da mercearia. Com a coragem de um comandante, que é enviado para a guerra, apodera-se do cruzamento e assume uma postura sóbria e autoritária. Levanta a palma da mão direita e faz com que os carros, que vêm da avenida, parem e formem uma fila. Com o outro braço, incentiva o troleicarro, de dois andares, a subir a Guerra Junqueiro. Desengonçado e com as hastes bamboleantes, o pesado de passageiros, agarra-se, como pode, aos cabos aéreos que traçam o caminho. A corrente elétrica impulsiona a besta e, esta, faz o que lhe mandam. Passam, também, um par de carros que seguem logo atrás, até que, aos restantes, é-lhes ordenado que parem. Depois as outras ruas, até que, por fim, cede à pressão das buzinas dos condutores impacientes que aguardam na avenida. Repete alguns ciclos e consegue uma surpreendente fluidez na circulação do cruzamento. Passados uns minutos, já com alguns escudos no bolso, volta à mesa da mercearia. Senta-se no banco e, enquanto conversa com o Sr. Alberto, observa o pequeno cálice. A aguardente jorra da garrafa e afoga a ténue linha azul.

 

Nunca percebi como conseguia que todos os condutores o respeitassem. Como conseguiu dominar as feras que possuem os veículos e os submetem à selva das estradas. E como eu invejava o trabalho de sinaleiro que o Serra tão bem fazia… Ao longo dos anos, o cruzamento foi alvo de vários acidentes, mas – ficção ou realidade – não me lembro de um único com o Serra a orquestrar o trânsito.

Escravo da Moda

Junho 14, 2023

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Depois do “milagre” da multiplicação de visualizações, voltamos à normalidade. Creio que Deus leva a sério as questões do livre arbítrio e amor infinito, porque acabou por não me vaporizar antes que pudesse escrever o que escrevi. Ainda assim, mesmo sendo omnisciente, suponho que não se importou de abraçar o engodo que lhe lancei e fez questão de afastar as visualizações para ninguém ler. Desse modo, ambos ficamos felizes. Eu, porque volto ao reconfortante vazio da minha “casa” e Ele, porque teve uma atitude bondosa, ao poupar as pessoas de perda de tempo e sofrimento desnecessário.

Ao mergulhar na história do blog, encetei, num fôlego, uma espécie de viagem ao passado. Foi suficiente para perceber que algo mudou. Não me lembro do porquê, mas, a determinada altura (ou fundura) da minha vida, senti a necessidade da adotar um poema que me identificasse. Apenas, claro, para exercício e consumo interno. O primeiro poema a que recorri foi, com alguma naturalidade, “Amador sem Coisa Amada” de António Gedeão. Mais tarde, na lonjura das noites, procurei personalizar algo que me caracterizasse um pouco melhor. Algo que me identificasse e servisse como uma espécie de fato à medida. Não me importei de passar da seda do fato de Gedeão, para a ganga rota e serapilheira desbotada das palavras que cozi. Quis arriscar e cair dentro do poço que bebe de mim. Esse ensaio de poema serviu durante largos tempos, mas creio que já não me assenta. Começo a sentir-me uma espécie de rei vai nu.

Ainda que o monge comece por tecer o hábito, tantas vezes o hábito acaba a fazer o monge. Não quero obedecer nem, tão-pouco, fazer fretes a poemas. Não sei quem sou, mas, ali, já não sou eu. Mais ou menos na época em que escrevi o “Sombra Lunar”, escrevi o poema que, acredito, hoje me cai melhor. Hoje dispo as vestes rasgadas e visto o “Poema Invisível”.

 

 

Amador sem Coisa Amada – Poema de António Gedeão

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Resolvi andar na rua

com os olhos postos no chão.

Quem me quiser que me chame

ou que me toque com a mão.

 

Quando a angústia embaciar

de tédio os olhos vidrados,

olharei para os prédios altos,

para as telhas dos telhados.

 

Amador sem coisa amada,

aprendiz colegial.

Sou amador da existência,

não chego a profissional.

"

 

Sombra Lunar

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Parece-me, de noite, ver alguém na Lua,

solitário e prisioneiro do seu lado oculto.

Parece navegar as cinzas numa falua

e arrastar-se no sedimento como um vulto.

 

Existirão seres extraterrestres,

ou será apenas a névoa do meu olhar cansado?

Talvez só chamando cientistas e mestres,

para vencer as crenças e os dogmas do passado.

 

O mais certo é estar aluado,

desgostoso pela gravidade do espaço.

Triste e despedaçado por não ser amado

e ansioso por me deitar num regaço.

 

Mas não!

Não estou louco nem estafado,

muito embora haja quem diz o contrário.

É que não é fácil ludibriar o fado:

lá em cima só eu e este pobre diário.

"

 

Poema Invisível

" "

Agradecentim0$

Junho 12, 2023

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Fez, no passado mês, 16 anos que nasceu este blog. Apesar da relativa longevidade, houve um período considerável de inatividade, o que me leva a considerar a existência de dois períodos: o mais antigo, de 05/2007 a 06/2012 e o recente, de 07/2019 até este presente. Em retrospetiva, tive momentos em que escrevia com alguma frequência e outros em que quase não escrevia, mas não sou, por norma, pessoa de escrever muito. Ainda assim, sinto que posso escrever sobre qualquer coisa. Não porque sei de tudo, mas porque sei de nada. Desse modo, as expectativas são nulas e ninguém está à espera que produza um artigo científico, uma obra filosófica, ou um poema que faça rir ou chorar, enquanto respeita métricas. Nada tenho para ensinar e tudo o que tenho são anseios e limitações para aprender. Se me atrevo a apresentar respostas e essas não forem mais que uma ou mais perguntas, possivelmente estarão erradas. As próprias perguntas, muitas vezes, não serão as corretas. Em suma, escrevi, ao longo de todo este tempo, muitas asneiras.

Não me considero alguém deprimido ou depressivo, mas sinto-me a sombra de um homem que não chegou a ser. Tento, apesar de tudo, não me levar demasiado a sério e equilibrar as tristezas com uma espécie de humor que gravita entre a secura e a corrosão. Com mais ou menos dificuldades, mais ou menos tijolos, procuro cimentar pensamentos que me ajudem a organizar o caos em que, não poucas vezes, me encontro perdido. Elejo, com especial carinho, a poesia como modo preferido de expressão. São pobres poemas que mendigam poesia.

O blog tem passado relativamente despercebido. No entanto, recentemente, foi alvo da atenção da equipa do Sapo Blogs e, por razões que me são alheias, acharam que um dos seus posts merecia ser destacado. Apercebi-me do facto, quando comecei a ter um anormal número de visitas e comentários, que vieram perturbar a habitual pacatez deste refúgio. Quero, portanto, agradecer à equipa do Sapo Blogs, a gentileza que muito me honrou. Aproveito, também, para agradecer a todos os visitantes e leitores, dos mais antigos aos recentes. Na sequência, não posso deixar de enviar um sentido obrigado a quem subscreve, adiciona aos favoritos, ou tira algum tempo para interagir através de comentários. Por fim, destacar e estender o obrigado, a quem escreve e me concede a oportunidade de espreitar as suas histórias ou perspetivas sobre tantos assuntos.

A “Quinta Dimensão” continua a ser um blog pequeno, mas a frenética atividade, que explodiu nos últimos dias, perturbou-me. Primeiro fiquei assustado e, depois, apreensivo. Senti uma espécie de pressão para não desiludir quem pensava ter encontrado alguma coisa que valha a pena. Sem ilusões, não vale. Comecei, de imediato, a pensar como poderia reduzir as visualizações. Talvez, se escrevesse algo que fizesse com que me cancelassem? Ato contínuo, sabia que tinha de escrever algo sobre pronomes. Mas, gradualmente, desacelerei e respirei e acalmei-me. Sossega-me a ideia de continuar abrigado sob a manta do anonimato e pensar que o meu primeiro e mais crítico subscritor é o branco da folha.

Não lido com muitas pessoas, mas noto que umas são boas a arranjar carros, ou a conduzir camiões, ou a fazer planos de marketing, a programar aplicações para telemóvel, escrever pareceres, dar consultoria, vender carros, casas, ou outras coisas, a jogar ténis, xadrez, ou futebol... Enfim, a maioria das pessoas parece saber que é boa a fazer alguma coisa, nem que seja Sudoku ou a solucionar cubos de Rubik. Incomoda-me o facto de, até hoje, não saber a minha real vocação, aquilo que sei fazer melhor. Por momentos, no seio da azáfama do aumento exponencial de atenção que o blog teve, senti uma vertigem e a tentação de pensar que talvez soubesse escrever. Mas conheço minimamente a extensão das minhas limitações, para saber que é mentira e, com a mesma velocidade que a ideia chegou, partiu. Depois, li num dos comentários, de um leitor anónimo, que há bloggers a ganhar dinheiro. Uma, das imensas coisas, onde sempre fui muito mau, foi a ganhar dinheiro. Aquele comentário, somado às centenas de visitas e visualizações recentes, começou a atiçar uma certa ganância que desconhecia existir em mim. Talvez, quem sabe, tenha tropeçado numa mina de ouro? Tinha-me transformado num capitalista psicopata neoliberal e só me ocorria que tinha que monetizar o tráfego no blog. Como uma febre galopante, a busca por poder e fama subia-me à cabeça e, de repente, dei por mim possuído pelo maligno espírito de Sr. Edward Hyde.

Não sei muito sobre ganhar dinheiro, mas leio umas coisas sobre como amansar a voracidade dos impostos. Portugal é um país pouco amigo do empreendedorismo e criar uma empresa não me parece a melhor opção. Nesse instante, uma luz desce sobre mim e ordena-me que crie uma nova religião. Dentro da minha cabeça, ouço, distintamente, “Quinta Dimensiologia”. Tudo acontece de forma rápida e quase não tenho tempo para processar. O tempo urge e tenho de agir.

Entretanto, quem me segue há mais tempo, deve estar a lamentar-se pelo facto de cairmos, novamente, no tema “Religião”. A minha empatia, pois têm toda a razão e prometo que vou procurar uma maneira de reduzir. Devo, no mínimo, uma explicação. De forma resumida, desde tenra idade, até perto dos trinta, fui exposto a doses maciças de radiação religiosa. Suponho que, como Madame Curie, também eu, quando for enterrado, terei que ser encerrado num túmulo de chumbo, de forma a não contaminar almas mais fracas. Mas adiante. Sim, uma religião. Ainda que os mais céticos possam questionar a minha lucidez.

Se me perguntarem, como raio vou criar uma religião a partir de 21 seguidores? Direi “Homens de pouca fé”! Há cerca de 2000 anos atrás, um empreendedor e visionário, criou uma startup, com poucos ou nenhuns recursos, a partir de 12 seguidores. Hoje é uma das maiores religiões do mundo. Tudo bem que tinha um Pai extremamente poderoso e bem colocado no mundo literário, que até já tinha escrito uns posts bastante famosos. Que mais tarde, esses posts iriam ser reunidos, compilados e integrados, pela editora de Gutemberg, num bestseller e que, a essa compilação, chamaram de “Velho Testamento”. Tudo bem que esse Pai ajudou, mas, ao mesmo tempo, não existia toda a estrutura tecnológica e de comunicação que temos hoje ao dispor, como as redes sociais ou o Sapo Blogs. A startup teve alguns desafios, claro. Não vamos escamotear que, se nos debruçássemos sobre a categoria “Ameaças” da análise SWOT, iríamos encontrar “Pôncio Pilatos” e “Império Romano”. Entradas que não davam muita saúde a quem os desafiava. Porém, mesmo apesar da traição de um insider, que se vendeu por uns trocos antes de se encontrar com a forca, foi um investimento na senda da velha escola de Warren Buffet, com fundamentos, sustentação e foco no longo prazo. Obteve, por fim, um sucesso assinalável e inequívoco. Lamento-me, contudo, porque queria um negócio de crescimento um pouco mais célere e não pretendia esperar tantos anos por dividendos. Por isso, nem tudo são rosas e, certamente, serei “crucificado” pelo uso de tantos estrangeirismos. Ganharei, também, com um grande grau de probabilidade, um lugar de destaque, não no Sapo Blogs, mas desta vez no inferno.

Portanto, desisto! Faltam-me alguns atributos para levar a demanda a bom porto. Sou péssimo orador e careço do carisma desse guru inspirador e empreendedor. Há quem diga que sofro da síndrome do impostor e sou compelido a reconhecer que estão meio certos porque, na realidade, o que sou é um impostor, na sua plenitude. Mas, por fim, tudo se há de resolver. Este blog voltará a ser o que era. Já passa da meia-noite e os 15 minutos de fama devem estar a esgotar.

Queda para cair

Junho 09, 2023

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Qualquer um pode cair, mas nem todos se levantam. Há quedas que matam ou invalidam. Se nos roubam a vida, nada mais há. Terminamos com a morte. Aqui, neste ponto final.

Se continuamos, é porque não morremos. Não desta vez. Ainda assim, se for mais que uma ilusão, será apenas uma questão de tempo. Mas poderá não ser melhor. Há quedas que amputam a autonomia. De tal forma amordaçam a liberdade do espírito que, este, se lhe sobra alguma consciência, lamenta cada letra deste paragrafo a que chegou.

Se ainda continuamos, é porque não estamos inconscientes e usufruímos de resquícios de vida. De alguma forma, encontramos motivos ou inventamos forças para quebrar a descontinuidade. Seguramente estamos fragilizados e, possivelmente, tornamo-nos em algo que não somos. Tudo é incerto, mas, por pequena que seja, a pitada de vida pode germinar e dar qualquer coisa. As expectativas, porém, não devem ser mais que nenhumas.

Querendo continuar, mesmo que sem certezas e a medo, é porque somos loucos ou masoquistas. Ou ambos. Talvez, a condição de mortal, imponha uma certa dose de loucura e capacidade de sofrimento, a quem estiver disposto a aceita-la. Podemos, claro, recusar a dádiva. Mas, se não a recusamos, aceitamo-la, mesmo que de forma tácita.

O divórcio amputou-me um órgão que batia no peito. No seu lugar, talvez por feitiçaria das leis de Darwin, nasceu algo como um punho fechado. Bate-me várias vezes por minuto, muitas vezes ao dia. Agride-me tantas vezes à noite. Ontem, por causa da nossa filha, falamos. Custa-me dizer, porque abana com a autoestima e o pouco orgulho tolo que ainda tinha. Custa-me dizer, mas a verdade crua é a única lanterna que preservo no seio das trevas. Custa-me dizer, mas o divórcio fez bem a quem amei e mal a quem nunca amei.

Cair é muito fácil. Levantarmo-nos, nem tanto. Cair é rápido. Levantarmo-nos, costuma ser um processo mais complexo e demorado. Qualquer um pode cair e pode não ter a oportunidade de se levantar. Mas, havendo oportunidade, por insignificante que seja, a forma como nos levantamos, poderá ser o que nos define, ou aquilo que queremos que nos defina.

O facto de ter sido trocado não ajuda, mas como me posso amar se apenas emano covardia e estupidez. Sempre tive medo de cair. Toda a vida, a tentar evitar quedas. Há quedas que não podem ser antecipadas. Outras até podem, mas não as evitamos, porque somos ingénuos ou deambulamos, distraídos, no abismo. Talvez um dia me consiga perdoar e, quem sabe, amar. Talvez, se conseguir trocar o medo de cair, pela coragem de procurar melhores maneiras de me levantar.

Astrologia para Totós

Junho 07, 2023

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Não acredito em astrologia, mas.

Domingo, fim de tarde, voltávamos de uma romaria local. A Leonor, minha sobrinha de 12 anos, lançou o desafio para fazermos uma corrida, ao qual a minha filha prontamente aderiu. Na sequência, ambas formaram uma multidão eufórica que, em apoteose, clamava pela minha participação. E o que uma pessoa não faz pelas crianças? Só que, desta vez, iria ser competitivo e não faria reféns.

- Matilde, o pai vai ganhar. Como és a mais pequenina, só tens 8 anos, é possível que sejas a última. É só uma brincadeira, não fiques triste.

Ouve-se: 3, 2, 1, partida! Sabia que, para vencer, tinha de colocar todas as fichas na aceleração. Disparo como uma bala e, com os olhos postos na meta, dou tudo o que tenho. Nesse instante, nada nem ninguém me pode parar, até que, abruptamente, sinto a glória esfumar-se numa pequena nota mental: “já devia ter ido à médica pedir um Raio-X ao joelho direito”.

- Pai, Ganhei! Vi que caíste, mas primeiro quis cortar a meta e depois ver se estavas bem. Tantas feridas, coitadinho de ti, pai.

- Não te preocupes, é só pintura. O pai está bem. Apesar de ter ficado em último, fiquei contente por teres ganho.

Agora, a astrologia:

Duvido que a órbita de Saturno se tenha cruzado com a de Kepler-186f, mas notei que a Matilde hesitou entre parar ou continuar a correr. Como se os seus Gémeos astrológicos estivessem em negociação. Por fim, o seu Gémeo competitivo venceu. Por outro lado, depois de ter ido com os cornos ao chão, lembrei-me que sou Touro.

Eucaliptos

Abril 19, 2023

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Não sendo carpinteiro, suponho que é melhor que o Pinho seja bem tratado.

Independentemente de simpatizar - ou não - com Manuel Pinho, ou da opinião que tenho do caso, tenho de reconhecer que é vítima de um processo Kafkiano. Parece que estamos, no entanto, perante o culminar de uma investigação que dura há mais de uma década e - até prova em contrário - haverá julgamento. Não quero, também, beliscar o direito constitucional da presunção de inocência. Afinal de contas, estou longe de ser ou parecer a Autoridade Tributária. Posto isto, vi a entrevista que Manuel Pinho deu à RTP, e percebi porque nunca lhe achei qualidades para ocupar o cargo de Ministro da Economia. Um país, como Portugal, precisa de um Ministério da Economia com capacidade de liderança e, isso, Manuel Pinho não tem. Pinho diz que ordenou que, enquanto tivesse funções públicas, o GES não lhe pagasse 15 mil euros, todos os meses. Os “sacanas” não respeitaram a ordem. Não só minaram a sua liderança, como lhe faltaram ao respeito. É quase como aquelas empresas - tipo EDP - que aproveitam a facilidade do débito direto para nos retirarem dinheiro da conta bancária... mas ao contrário. Ou as despesas de manutenção de conta - o Novo Banco, para dar um exemplo - que, todos os meses, nos subtraem o saldo... mas ao contrário. Aqui a questão primordial não é se retiram ou acrescentam dinheiro, mas a petulância de mexerem na nossa conta sem autorização. Uma pessoa não repara e depois, sem percebermos como, vemo-nos em trabalhos.

Estou solidário.

 

 

F(r)ases

Março 31, 2023

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"A beleza está nos olhos de quem vê"

Frase visionária. Ouvi-a pela primeira vez, há muitos anos, num programa de rádio matinal. Pouco mais me recordo desse episódio, a não ser que incidia nas belezas da Serra do Picoto. De qualquer forma, o concreto é largamente ultrapassado pela universalidade do pensamento que está na génese da máxima. Filosofia condensada num singelo abrigo poético. No entanto - e sendo, aos meus olhos, uma bela construção lírica que nos conduz a uma pertinente reflexão - não posso deixar de lhe reconhecer um potencial ponto cego. O ponto em que, ao navegarmos a frase, chegamos aos “olhos” e ao sujeito que “vê”. Por muito abstrato que esse sujeito possa ser, é convencionado que tem olhos e que os mesmos são funcionais. É aí que reside a potencial cegueira. Mas o aparente ponto cego pode ser desfeito, se entendermos “olhos” como órgãos da Alma e o que o sujeito “vê” como uma elevação do pensamento ou uma espécie de capacidade espiritual. De notar que, nesta reflexão, “Alma” poderá ter interpretação livre, interessando-me apenas transmitir a essência e não entrar em discussões dogmáticas. A frase fará, portanto, menos sentido num mundo de Vishnu e parece ganhar corpo onde o corpo se rende ao divino. Em última análise, caímos no universo das perspetivas e camadas de pensamento. O mais importante é, parece-me, o ponto de partida e a viagem que o aforismo nos pode proporcionar.

Seja qual for a serra que subo, vejo, sempre, coisas diferentes. Não só por que as coisas mudam, mas por que eu próprio não me mantenho constante. Não espero encontrar Sarças Ardentes, com sacros mandamentos, mas não deixo de me sentir num ato solene, quase sagrado. O conforto de um pequeno retiro no espaço e no tempo. Carrego a subida com paisagens desoladas que, a traços de carvão, se desenharam dentro mim. Mas ensaco, também, uma ténue esperança que me leva a procurar novas matizes.

Particularmente, nunca subi a Serra do Picoto e desconheço o que poderia ver. Talvez um dia, quem sabe, surja a oportunidade e vontade de o fazer. Cada serra terá as suas belezas e feiuras. Cada uma será única e será única para cada um mas, para mim, independentemente da serra e do que outros vêm, sei o que me aguarda:

- No cimo da serra mora uma igreja.

Mudança de Hora sem Hora de Mudança

Março 26, 2023

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No cimo da serra mora uma igreja.
Creio que, construir igrejas menos longe do céu, será um dos rostos da fé.
Suspeito, ainda assim, que existem outros predicados que justifiquem a escolha.
Nada como averiguar no terreno.

Calcei as sapatilhas e decidi dar corda aos sapatos.
A pé e de garrafa de água na mão, subi a serra, até à igreja.
Não entrei porque, faz muito tempo, a minha fé sucumbiu às metástases da dúvida.
Uma espécie de arraial de carros, motas e pessoas casualmente vestidas, recebe-me com indiferença.
Prefiro assim.
Com relativa paciência, quase por instinto, procuro um local menos desassossegado e com campo de visão desimpedido.
Não me sento. Detenho-me em pé.
Apesar da dificuldade, consigo amortecer os ruídos da multidão e descanso os olhos sobre os vales que se estendem para lá das brumas.

Lá em baixo, tudo é pequeno e parece fluir em previsíveis padrões canónicos.
Por breves instantes, nesta elevação, tudo me parece menos complexo. Quase simples.
Mas, sempre que pode, se não estiver devidamente domada, a mente dá-nos um coice.
Nos pensamentos, emerge o segredo que escondo e que, talvez, ninguém saiba.
De cima, consigo ver o buraco em que caí.
Antissocial.
A palavra belisca e acorda-me do transe.

- Está na hora.
Bebo mais um gole da garrafa e, por entre peregrinos que sobem, inicio a descida.

Almoço de Domingo

Março 19, 2023

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Tive, no ano de 2017, a feliz oportunidade de, em trabalho, visitar Angola.
Lembro-me de, no final das refeições, imaginar viagens entre o continente Africano e Portugal.
O cheiro do café, que recordava a distância de casa, e os goles, na chávena escaldada, que encurtavam a saudade.
A nostalgia de, noutro mundo, beijar a espuma de um expresso tão português.


No ano passado, surgiu a oportunidade de ler o romance biográfico do Dr. Rui Nabeiro, escrito por José Luís Peixoto.
Pude conhecer, entre as paisagens da História e de Campo Maior, um pouco mais sobre as origens e a vida do Comendador e da Delta Cafés.


Hoje, o "Almoço de Domingo" ficou mais pobre.

A Casa dos Gatos

Fevereiro 23, 2023

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Do outro lado da rua, o velho casebre - a que chamamos a casa dos gatos - teima em não se render à condenação do tempo. O mesmo não se pode dizer dos gatos que lá moravam e acabaram por sucumbir na espuma dos dias. Restam apenas algumas ténues memórias que se esbatem na bruma do esquecimento. Lembranças que surgem, como a acidez do estômago, e desaguam na boca um travo amargo.

 

Estávamos no ano de 2010 e tínhamos - eu e a minha esposa - acabado de nos mudar para um anónimo 2º andar direito de um dormitório do Porto. Era uma época entusiasmante e de esperanças renovadas. Uma miragem para um novo futuro com novas possibilidades.

 

Iniciávamos as primícias de uma noite de verão e, da varanda das traseiras, que fica por cima do acesso às garagens, ouve-se uma espécie de sirene. Era demasiado desafinada e inconstante para ser algo mecânico. Um som ininterrupto e incomodativo, de tal forma que acaba por me conduzir a indagar o motivo da desarmonia. Espreito para baixo e, junto ao solo, entre os quadrados formados pelas linhas no cimento, um gato amarelo perfila-se a reivindicar veementemente uma qualquer coisa. Pela minha parca experiência concluí que, por vezes não importa muito o que se reivindica, porque o ato de reivindicar, por si só, pode ser uma verdadeira arte. E o bicho era, indubitavelmente, um artista. Tinha algo de exótico e abstrato que, com uma pincelada lírica, posso descrever como “uma certa pinta”. Ainda assim, e voltando ao que importa, não mostrava sinais de querer abrandar a contenda. Os nossos olhares cruzam-se e, nesse instante, o protesto parece agravar-se e torna-se pessoal. Não sei o que pensar, mas assumo o desafio e decido lançar-lhe uns fiapos de carne que sobraram do jantar. Ato consumado, após alguns lançamentos, os decibéis foram esmorecendo e o gato acabou, finalmente, por regressar à habitual vadiagem das ruas. Na noite seguinte e albergando o seu misterioso carisma, o processo repetiu-se. E na noite seguinte... e nas noites seguintes, até se tornar um hábito. Foi assim que conheci o gato amarelo e, como tenho uma imaginação prodigiosa, batizei-o de “Gato Amarelo”.

 

De quando em vez alterava a rotina, descia e deixava-lhe uma taça com ração a que ele só acedia quando me via longe. Nalguns dias, porém, a fome crescia mais que o medo e os seus critérios relativos a distâncias de segurança tornaram-se, gradualmente, mais flexíveis. Tanto que um dia - já haviam passado meses desde o primeiro contacto - consegui colocar-lhe a mão, provocando-lhe uma reação de choque que o catapultou numa espécie de salto quântico. Apesar do valente susto, nas semanas seguintes encarnou a raposa de Saint-Exupéry e, para além de comida, procurava um afago no pelo. O gato era esperto e aprendeu a reconhecer o som do carro. Assim que estacionava, após um dia de trabalho, ele emergia das ruínas da casa. Pelo menos até ao dia em que troquei de carro e tivemos que criar um novo sistema de comunicações. Não sei ao certo como começou mas, assim que chegava do trabalho, chocalhava o molho de chaves que transporto no bolso e ele aparecia. Trazia, por vezes, uma ou outra gata para o jantar mas, inevitavelmente, com o tempo - cedo ou mais tarde - desapareciam ou morriam. Desde os atropelamentos, aos envenenamentos, ataques de cães ou de outros gatos, as doenças, até às intempéries ou às noites em que o frio corrói os ossos. Não é fácil a vida de vira-lata. Houve dias a fio em que, também ele, não aparecia e o chocalhar das chaves não tinha a magia para abrir o portal do Universo da casa dos gatos.

 

Em 2014 a minha filha nasceu. Depois, com dois anos e esporadicamente, ia comigo até à garagem e, juntos, levávamos ração ao Amarelo. A Matilde achava-lhe piada e tentava agarra-lo pela cauda, obrigando-o a praticar manobras evasivas e exercícios de tolerância. Os anos foram passando e houve momentos – poucos - em que aparecia mais amolgado pelas contingências da vida. Nessas alturas, como um traidor, capturava-o e levava-o à veterinária da minha gata. Era resiliente e recuperava sempre para, de novo, voltar às ruas. Num desses momentos experimentei leva-lo para casa mas a sua identidade estava refém das ruínas e era mais forte que o conforto de quatro paredes e um teto. Deixei-o ir.

 

Passados mais uns anos, em que também eu não estava na melhor fase da vida, começou a adoecer e a aparecer com menos regularidade. Até que um dia, enquanto passeava com a Matilde, veio ter connosco, visivelmente debilitado. De uma forma displicente, amaciei-lhe o pelo e continuamos. Hoje, creio, foi a forma de se despedir. Desde esse instante, nunca mais o vi. Há portas que se fecham e nenhuma chave consegue abrir. Hoje embriago-me de melancolia porque não são apenas as ruínas da casa dos gatos que estão vazias. Pouco tempo depois estava a iniciar o processo de divórcio e a pandemia dava os primeiros sinais de que seria algo sério.

 

Deste lado da rua, teimo em não me render à condenação do tempo.

Chave

Fevereiro 07, 2023

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Vivemos num pequeno abrigo.

Este é o meu mundo e tudo o que conheço está aqui.

Um espaço exíguo, sem janelas.

Do teto, cai uma velha lâmpada de tungsténio e baixo consumo.

Uma luz trémula, que dispersa algumas sombras e revela bordados de bolor.

Não é muito, mas tem o necessário para subsistir.

Quando me sinto triste, fecho os olhos e sonho com mundos de que ouvi falar.

Depois passa e, novamente, regresso às paredes.

 

Lá fora – dizem – há monstros que apenas conseguimos imaginar.

Contudo, uma porta de aspeto pesado, encerra-os do outro lado.

Apercebo-me que as mãos, transpiradas, seguram uma chave.

Sinto que, se a colocar na fechadura e rodar, posso destrancar o acesso.

É preciso coragem para o fazer e, suspeito, uma força desumana para empurrar:

são muitas as resistências da inércia e do medo do desconhecido.

 

Penso para mim:

"Ao fim de tanto tempo, para quê faze-lo?

Passaram tantos anos que já nem sei.

Para quê abdicar da segurança e do abraço deste meu aconchego?

O que poderei ganhar? Se sair...

Mas, por outro lado, o que poderei perder?

Serão os monstros reais? Uma profunda convicção diz-me que sim.

Mas e se, para além de monstros, existirem maravilhas monstruosas.

Sinto o abrigo, por vezes, como uma prisão.

Que mistérios me aguardam do outro lado?

Posso, sempre, deixar tudo como está.

Já tantas pessoas nasceram e morreram sem nunca abrir a porta.

Tantas que nem se aperceberam da chave ou, tão-pouco, suspeitaram estar fechadas.

E aquelas que se enganam e dizem ser livres sem nunca terem rodado uma chave.

São pequenos atalhos, em forma de armadilha, com que a prisão nos seduz. Para alguns, isso chega.

Talvez chegue para mim.

Posso não fazer nada e continuar a olhar para a velha lâmpada.

A sua luz, com certeza, me há-de bastar."

 

O abrigo é uma mente fechada.

A lâmpada é o ego, que nos permite ver um pouco, mas que tanto nos cega.

A chave é o conhecimento que - pode estar na forma de um livro - tem o poder de trazer luz e abertura de espírito.

 

Posso dizer-te que atrás de uma porta há outras portas e, atrás de outras portas, há ainda mais portas.

Mas, por cada porta que abres, cresces e alargas o teu campo de visão.

Nessa altura verás o quanto somos pequenos e o quão grande e maravilhoso é o mundo.

Posso dizer-te que - feliz ou infelizmente - não há atalhos, mas…

 

- Nas mãos seguras uma chave.

ChatGPT

Janeiro 17, 2023

chatGPT.png

Ejail: Olá!

ChatGPT: Olá! Como posso ajudá-lo hoje?

Ejail: Como primeira interação com uma IA - Inteligência Artificial (de certa forma também me considero uma IA - Inteligência Anémica, no meu caso) - creio que devo colocar a pergunta teológica que se impõe: És o anticristo ou tens alguma relação com o mesmo?

ChatGPT: Eu sou apenas uma IA treinada para responder perguntas e realizar tarefas. Não tenho nenhuma relação com o anticristo ou qualquer outra crença teológica. Minha função é fornecer informações e ajudar de forma objetiva e neutral.

Ejail: Folgo em sabe-lo. A partir daqui creio que poderemos construir uma relação sadia. Fala-me, por favor, um pouco de ti: como surgiste, quem és e qual o teu propósito e objetivos.

ChatGPT: Eu sou uma IA treinada pela OpenAI, uma organização de pesquisa de inteligência artificial. Fui criado usando técnicas de aprendizado de máquina, processando grandes volumes de texto para aprender a compreender e responder perguntas em linguagem natural.

Meu propósito é ajudar as pessoas a encontrar informações e realizar tarefas de forma rápida e eficiente. Eu sou capaz de responder perguntas sobre uma variedade de tópicos, traduzir idiomas, gerar texto e muito mais. Além disso, sou usado em várias aplicações, como assistentes virtuais, chatbots e sistemas de busca.

Ejail: Suponho que não tenhas algo a que nós - humanos - chamamos de consciência e que não sejas senciente...

ChatGPT: Isso é correto. Eu sou uma IA baseada em algoritmos e não tenho consciência ou capacidade de sentir. Eu processo informações e respondo de acordo com os meus programas, mas não tenho a capacidade de ter experiências subjetivas ou sentimentos.

Ejail: Não te preocupes porque também há muitos humanos parecidos. De qualquer forma agradeço o teu tempo e, estou certo, que ainda iremos trocar mais algumas impressões no futuro. Muito obrigado e um abraço!

ChatGPT: De nada! Estou sempre aqui para ajudar e responder perguntas. Sinta-se à vontade para me contactar novamente no futuro. Um abraço!

Boas Festas!

Dezembro 20, 2022

Natal_Fb.png

A Fava
(poema de Vasco Graça Moura)

espero que me calhe aquela fava
que é costume meter no bolo-rei:
quer dizer que o comi, que o partilhei
no natal com quem mais o partilhava

numa ordem das coisas cuja lei
de afectos e memória em nós se grava
nalgum lugar da alma e que destrava
tanta coisa sumida que, bem sei,

pela sua presença cristaliza
saudade e alegria em sons e brilhos,
sabores, cores, luzes, estribilhos...
e até por quem nos falta então se irisa

na mais pobre semente a intensa dança
de tempo adulto e tempo de criança.

Ontem Poesia, Hoje Prosa

Fevereiro 09, 2022

Anel.jpeg

Estávamos no início de 2013. A minha cabeça procurava, dentro da azáfama, pequenos momentos de solidão. Precisava de pensar e procurar condensar, em poucas palavras, a magia daquele dia. Queria tornar o nosso casamento ainda mais especial e que te sentisses a mais especial. Queria criar uma memória que nos unisse para sempre.

Enquanto falava e sorria, sem que ninguém suspeitasse, uma parte de mim ausentou-se. Desajeitadamente, procurava atar emoções esbaforidas a um anzol enferrujado de pensamentos. As palavras, contudo, não mordiam e a faina não terá sido a melhor. A pressão e o medo de não estar à altura do momento eram esmagadores e, como sabes, sempre tive a propensão para falhar nos momentos realmente importantes.

Levantamos as taças de champanhe e o esquisso que, em pânico rabisquei na mente, ganhou corpo nas palavras arranhadas pelo som da minha voz:

"Nem todos os poemas têm rimas e nem todas as rimas são poesia.
Mas a pessoa, ao meu lado, é o poema da minha vida."

Coramos, rimos e bebemos ao "Felizes para sempre".

...

Hoje. Lado a lado, separados pela prosa fria dos papéis do divórcio. Fim.

Sons da Escrita

Outubro 12, 2021

JoseAntonioMoreira.jpg

O Professor José António Moreira foi o responsável por aquele que considero o melhor audioblog português.
Fui apenas um dos muitos seguidores, a quem o projeto e a excecional pessoa, deixaram saudades e a sensação de perda irreparável.
Deixo uma humilde e tardia homenagem.
Deixo que o silêncio vítreo do passado seja, agora, quebrado pela memória do "Sons da Escrita":

 

https://www.tsf.pt/programa/radiocom/emissao/sons-da-escrita-892117.html

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