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Quinta Dimensão

Repor Definições de Fábrica

Agosto 06, 2023

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Este texto é, especialmente, para mim. Não é um texto poético, onde me posso esconder, ou dissimular o que sinto, atrás de estrofes encriptadas. Faz parte de um esforço genuíno para cultivar verdade e preservar safras menos desonestas do carácter.

 

Ter um compromisso com a verdade é uma tarefa que exige atenção e vigilância permanentes. Por vezes há desvios, uns mais conscientes que outros, mas com o mesmo resultado: a inverdade, que mais não é que a mentira. Seria cómodo considerar meias verdades, ou meias mentiras, mas o caminho da autenticidade exige disciplina e uma capacidade de autoanálise fria e rigorosa. É, pois, ridiculamente fácil falhar e, não poucas vezes, falho.

 

Recentemente escrevi uma imprecisão, quando referi que não me considero uma pessoa deprimida. Para ser honesto, deveria ter afirmado que gostaria de não me considerar uma pessoa deprimida. Uma nuance que, desde a altura em que cometi a imprecisão, me anda a moer. Fica a correção.

 

Fora da escrita, no mundo dito “real”, criei o hábito de cerrar fileiras e de - atrás de um rosto fechado ou mesmo sorridente - ocultar o caos interior que tantas vezes me assombra. Ninguém, fora de mim, precisa de saber o esforço que faço para manter a união dos ossos do esqueleto. Foi, por esse motivo, que, um dia, criei este pequeno espaço de liberdade, onde - apesar de não saber quem sou - não tenho que ser quem não sou. Aqui sou anónimo, muitas vezes até para mim. Posso falar do que quero. Se quiser, posso até falar do que não quero. Ás vezes, por falta de tempo, em virtude de uma débil dedicação, ou até mesmo por falta de coragem, não consigo fazer a transição completa do personagem “real” para a genuinidade do "eu" do mundo da escrita. Fica a justificação.

 

Por fim, reparei que quase deixei de sonhar. Transformei-me numa espécie de máquina e, com ineficiência, percorro os dias e sobrevivo às noites. Aboli, das minhas leituras ou cogitações, qualquer vestígio de romantismo. Tudo isto é uma fotografia descolorida, mas traduz-se num retrato preciso.

 

Reposta a verdade, bem sei que tenho poucas aplicações.

Queda para cair

Junho 09, 2023

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Qualquer um pode cair, mas nem todos se levantam. Há quedas que matam ou invalidam. Se nos roubam a vida, nada mais há. Terminamos com a morte. Aqui, neste ponto final.

Se continuamos, é porque não morremos. Não desta vez. Ainda assim, se for mais que uma ilusão, será apenas uma questão de tempo. Mas poderá não ser melhor. Há quedas que amputam a autonomia. De tal forma amordaçam a liberdade do espírito que, este, se lhe sobra alguma consciência, lamenta cada letra deste paragrafo a que chegou.

Se ainda continuamos, é porque não estamos inconscientes e usufruímos de resquícios de vida. De alguma forma, encontramos motivos ou inventamos forças para quebrar a descontinuidade. Seguramente estamos fragilizados e, possivelmente, tornamo-nos em algo que não somos. Tudo é incerto, mas, por pequena que seja, a pitada de vida pode germinar e dar qualquer coisa. As expectativas, porém, não devem ser mais que nenhumas.

Querendo continuar, mesmo que sem certezas e a medo, é porque somos loucos ou masoquistas. Ou ambos. Talvez, a condição de mortal, imponha uma certa dose de loucura e capacidade de sofrimento, a quem estiver disposto a aceita-la. Podemos, claro, recusar a dádiva. Mas, se não a recusamos, aceitamo-la, mesmo que de forma tácita.

O divórcio amputou-me um órgão que batia no peito. No seu lugar, talvez por feitiçaria das leis de Darwin, nasceu algo como um punho fechado. Bate-me várias vezes por minuto, muitas vezes ao dia. Agride-me tantas vezes à noite. Ontem, por causa da nossa filha, falamos. Custa-me dizer, porque abana com a autoestima e o pouco orgulho tolo que ainda tinha. Custa-me dizer, mas a verdade crua é a única lanterna que preservo no seio das trevas. Custa-me dizer, mas o divórcio fez bem a quem amei e mal a quem nunca amei.

Cair é muito fácil. Levantarmo-nos, nem tanto. Cair é rápido. Levantarmo-nos, costuma ser um processo mais complexo e demorado. Qualquer um pode cair e pode não ter a oportunidade de se levantar. Mas, havendo oportunidade, por insignificante que seja, a forma como nos levantamos, poderá ser o que nos define, ou aquilo que queremos que nos defina.

O facto de ter sido trocado não ajuda, mas como me posso amar se apenas emano covardia e estupidez. Sempre tive medo de cair. Toda a vida, a tentar evitar quedas. Há quedas que não podem ser antecipadas. Outras até podem, mas não as evitamos, porque somos ingénuos ou deambulamos, distraídos, no abismo. Talvez um dia me consiga perdoar e, quem sabe, amar. Talvez, se conseguir trocar o medo de cair, pela coragem de procurar melhores maneiras de me levantar.

Tinta por uma Linha

Maio 18, 2023

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Tenho, cada vez mais, dificuldades em escrever. Aprendo, progressiva e pacientemente, a arte do analfabetismo. Como dizia o meu avô, no seu jeito transmontano, vou de cavalo pra burro. Os poucos textos, que vou produzindo, são escassos em extensão e fracos em qualidade. De pouca relevância intelectual e de insignificante profundidade. Porque sei que são o reflexo de quem sou, deles, pouco gosto. E, por falar em quem sou, assalta-me sobretudo a desilusão. O vazio que preenche a distância entre o que não fui e o que não gosto de ser. Como se a alma tivesse desistido e abandonado o corpo que arrasto sem rumo.

Mas, ainda que escrevesse muito e escrevesse bem, jamais seria escritor. Sou profundamente inábil para desempenhar profissões. Assumo-me incompetente e péssimo profissional. Para esquecer as dores, aprendi também a enfraquecer a memória e, por conseguinte, tornei-me velho e arrasei a capacidade de aprender. Há demasiado tempo que, para minha tristeza, não evoluo. Deixei de olhar para cima e apenas foco os cordões dos sapatos para zelar que não me derrubam. Na melhor das hipóteses e recorrendo ao neologismo, diria que não sou mais que um parco escridor.

Boas notícias para a humanidade! Não vem mal nenhum ao mundo por eu escrever menos. Pelo contrário, é menos poluição. Procuro, apenas por uma espécie de curiosidade mórbida, perceber as razões. Racionalmente ocorrem-me alguns motivos que justificam o facto. Lembro-me dos catalisadores que, por norma, me levam a escrever e podem estar sujeitos a perturbações:

Primeiro tenho de marinar uns dias numa boa depressão. Este é fator eliminatório, porque não me vejo a escrever sem uma abastada e consistente dose de depressão. Ainda assim tem de haver um certo cuidado de afinação pois, apesar de forte, a depressão não pode exceder o aceitável, ao ponto de incapacitar a produção intelectual. É um equilíbrio extremamente desafiante e, não poucas vezes, reprovo.

Consolidada a fase da depressão, segue-se a busca pela bênção de Cronos. É preciso tempo, para que dentro do buraco negro em que me encontro, seja possível escutar e interpretar todos os sons e silêncios. Mergulhar na matéria negra e integrar a antimatéria. Abafar o ruído, libertar os gritos. Depois, com o léxico limitado do cérebro elanguescente, procurar as palavras que melhor traduzam essa ilógica dissonante. Agregar as frases e pontua-las, de modo a que respirem ou abafem, consoante a cegueira dos nós que se apertam na garganta. Ordenar o caos em parágrafos e dar princípio e meio a algo que apenas parece ter fim. Nestes dias, nestas noites, tempus fugit. Também, neste ponto, não tenho estado à altura.

Por fim, sentir que tenho algo que valha a pena ser dito. Algo, mesmo que valha pouco. Aqui aborreço-me. Depois de falhar as outras premissas, escrutino-me: corpo, coração, mente, espírito, alma, o que for... Uma e outra vez. Apenas uma depressão desafinada e uma perda de tempo. Dentro de mim, não encontro nada.

Cinzento

Abril 08, 2023

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Quinta-feira, fim de tarde. Cabeça cheia, coração apertado, respiração pesada e umas gotículas de desânimo. Desço para a garagem e, finalmente, lubrifico a corrente da mota. Há um bom par de dias que inventava desculpas para não o fazer. Amanhã preciso de atacar a estrada e perder-me nos mistérios das suas curvas. Dentro do arrumo, descansa, há mais tempo do que devia, a bicicleta. Trago-a para fora, limpo a corrente das impurezas, que teima em acumular, lubrifico-a e revigoro os pneus com uma lufada de ar fresco. Está escolhido o veículo. Vou pedalar até os músculos doerem tanto que me vou esquecer dos motivos que me levaram a pedalar.

Sexta-feira, início da manhã. Fisicamente não estou preparado para chegar ao destino. Pensei-o mas não o disse, principalmente a mim. Ida e volta serão cerca de 200Km e nunca percorri tamanha distância de bicicleta, nem mesmo quando estava em melhor condição. Capacete, luvas, pedais encaixados e partida. São 6H45 e a lua ainda se banha na última luz que o Sol lhe empresta.

Não me considero ciclista, apenas alguém que gosta de andar de bicicleta e que o faz esporadicamente. Muito menos me considero fotógrafo, pois nem máquina fotográfica tenho. Tiro pouquíssimas fotos e todas com o telemóvel. Ainda assim aprecio a arte de fotografar e, quando tropeço em imagens singulares, belas ou feias, se me inquietam, tento perpetua-las para além do esquecimento e das falhas da memória. É, porém, extremamente difícil captar, num quadro e num instante, a alma daquilo que os sentidos experimentam. Dentro das minhas limitações, procuro não ficar demasiado distante dessa fatalidade. Neste caso, não deixo que o sentimento constante de que “podia ficar melhor” me impeça de continuar a falhar.

No início do ano fui, de mota, com o meu irmão, a Vila Praia de Âncora. Lembro-me de lhe ter dito, enquanto tomávamos café, o quanto gosto da freguesia e dos arredores. Disse-lhe, também, que gostaria de lá ir de bicicleta mas que não conseguia. Vejo, agora, que talvez tenha sido nesse instante que o meu inconsciente, silenciosamente, abraçou o desafio.

Ao longo da vida tenho colecionado um histórico razoável de falhas, derrotas e desistências. São marcas que pesam e, muitas vezes, são como uma âncora que me prende a uma espécie de lodo. São inúmeros os dias em que me arrasto. Enquanto pedalava, assaltou-me, várias vezes, o pensamento da desistência. Pode ser algo pequeno, com pouca importância, mas ontem cumpri. Para além de cumprir, ainda deu para tirar umas quantas fotografias (que podiam ter ficado melhor). E não há músculo que não doa mas, graças ao Sol, nada dói mais que a pele queimada e vermelha dos braços e das pernas. Posso dizer que a viagem me trouxe alguma cor e que me sinto menos cinzento.

 

F(r)ases

Março 31, 2023

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"A beleza está nos olhos de quem vê"

Frase visionária. Ouvi-a pela primeira vez, há muitos anos, num programa de rádio matinal. Pouco mais me recordo desse episódio, a não ser que incidia nas belezas da Serra do Picoto. De qualquer forma, o concreto é largamente ultrapassado pela universalidade do pensamento que está na génese da máxima. Filosofia condensada num singelo abrigo poético. No entanto - e sendo, aos meus olhos, uma bela construção lírica que nos conduz a uma pertinente reflexão - não posso deixar de lhe reconhecer um potencial ponto cego. O ponto em que, ao navegarmos a frase, chegamos aos “olhos” e ao sujeito que “vê”. Por muito abstrato que esse sujeito possa ser, é convencionado que tem olhos e que os mesmos são funcionais. É aí que reside a potencial cegueira. Mas o aparente ponto cego pode ser desfeito, se entendermos “olhos” como órgãos da Alma e o que o sujeito “vê” como uma elevação do pensamento ou uma espécie de capacidade espiritual. De notar que, nesta reflexão, “Alma” poderá ter interpretação livre, interessando-me apenas transmitir a essência e não entrar em discussões dogmáticas. A frase fará, portanto, menos sentido num mundo de Vishnu e parece ganhar corpo onde o corpo se rende ao divino. Em última análise, caímos no universo das perspetivas e camadas de pensamento. O mais importante é, parece-me, o ponto de partida e a viagem que o aforismo nos pode proporcionar.

Seja qual for a serra que subo, vejo, sempre, coisas diferentes. Não só por que as coisas mudam, mas por que eu próprio não me mantenho constante. Não espero encontrar Sarças Ardentes, com sacros mandamentos, mas não deixo de me sentir num ato solene, quase sagrado. O conforto de um pequeno retiro no espaço e no tempo. Carrego a subida com paisagens desoladas que, a traços de carvão, se desenharam dentro mim. Mas ensaco, também, uma ténue esperança que me leva a procurar novas matizes.

Particularmente, nunca subi a Serra do Picoto e desconheço o que poderia ver. Talvez um dia, quem sabe, surja a oportunidade e vontade de o fazer. Cada serra terá as suas belezas e feiuras. Cada uma será única e será única para cada um mas, para mim, independentemente da serra e do que outros vêm, sei o que me aguarda:

- No cimo da serra mora uma igreja.

Mudança de Hora sem Hora de Mudança

Março 26, 2023

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No cimo da serra mora uma igreja.
Creio que, construir igrejas menos longe do céu, será um dos rostos da fé.
Suspeito, ainda assim, que existem outros predicados que justifiquem a escolha.
Nada como averiguar no terreno.

Calcei as sapatilhas e decidi dar corda aos sapatos.
A pé e de garrafa de água na mão, subi a serra, até à igreja.
Não entrei porque, faz muito tempo, a minha fé sucumbiu às metástases da dúvida.
Uma espécie de arraial de carros, motas e pessoas casualmente vestidas, recebe-me com indiferença.
Prefiro assim.
Com relativa paciência, quase por instinto, procuro um local menos desassossegado e com campo de visão desimpedido.
Não me sento. Detenho-me em pé.
Apesar da dificuldade, consigo amortecer os ruídos da multidão e descanso os olhos sobre os vales que se estendem para lá das brumas.

Lá em baixo, tudo é pequeno e parece fluir em previsíveis padrões canónicos.
Por breves instantes, nesta elevação, tudo me parece menos complexo. Quase simples.
Mas, sempre que pode, se não estiver devidamente domada, a mente dá-nos um coice.
Nos pensamentos, emerge o segredo que escondo e que, talvez, ninguém saiba.
De cima, consigo ver o buraco em que caí.
Antissocial.
A palavra belisca e acorda-me do transe.

- Está na hora.
Bebo mais um gole da garrafa e, por entre peregrinos que sobem, inicio a descida.

A Casa dos Gatos

Fevereiro 23, 2023

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Do outro lado da rua, o velho casebre - a que chamamos a casa dos gatos - teima em não se render à condenação do tempo. O mesmo não se pode dizer dos gatos que lá moravam e acabaram por sucumbir na espuma dos dias. Restam apenas algumas ténues memórias que se esbatem na bruma do esquecimento. Lembranças que surgem, como a acidez do estômago, e desaguam na boca um travo amargo.

 

Estávamos no ano de 2010 e tínhamos - eu e a minha esposa - acabado de nos mudar para um anónimo 2º andar direito de um dormitório do Porto. Era uma época entusiasmante e de esperanças renovadas. Uma miragem para um novo futuro com novas possibilidades.

 

Iniciávamos as primícias de uma noite de verão e, da varanda das traseiras, que fica por cima do acesso às garagens, ouve-se uma espécie de sirene. Era demasiado desafinada e inconstante para ser algo mecânico. Um som ininterrupto e incomodativo, de tal forma que acaba por me conduzir a indagar o motivo da desarmonia. Espreito para baixo e, junto ao solo, entre os quadrados formados pelas linhas no cimento, um gato amarelo perfila-se a reivindicar veementemente uma qualquer coisa. Pela minha parca experiência concluí que, por vezes não importa muito o que se reivindica, porque o ato de reivindicar, por si só, pode ser uma verdadeira arte. E o bicho era, indubitavelmente, um artista. Tinha algo de exótico e abstrato que, com uma pincelada lírica, posso descrever como “uma certa pinta”. Ainda assim, e voltando ao que importa, não mostrava sinais de querer abrandar a contenda. Os nossos olhares cruzam-se e, nesse instante, o protesto parece agravar-se e torna-se pessoal. Não sei o que pensar, mas assumo o desafio e decido lançar-lhe uns fiapos de carne que sobraram do jantar. Ato consumado, após alguns lançamentos, os decibéis foram esmorecendo e o gato acabou, finalmente, por regressar à habitual vadiagem das ruas. Na noite seguinte e albergando o seu misterioso carisma, o processo repetiu-se. E na noite seguinte... e nas noites seguintes, até se tornar um hábito. Foi assim que conheci o gato amarelo e, como tenho uma imaginação prodigiosa, batizei-o de “Gato Amarelo”.

 

De quando em vez alterava a rotina, descia e deixava-lhe uma taça com ração a que ele só acedia quando me via longe. Nalguns dias, porém, a fome crescia mais que o medo e os seus critérios relativos a distâncias de segurança tornaram-se, gradualmente, mais flexíveis. Tanto que um dia - já haviam passado meses desde o primeiro contacto - consegui colocar-lhe a mão, provocando-lhe uma reação de choque que o catapultou numa espécie de salto quântico. Apesar do valente susto, nas semanas seguintes encarnou a raposa de Saint-Exupéry e, para além de comida, procurava um afago no pelo. O gato era esperto e aprendeu a reconhecer o som do carro. Assim que estacionava, após um dia de trabalho, ele emergia das ruínas da casa. Pelo menos até ao dia em que troquei de carro e tivemos que criar um novo sistema de comunicações. Não sei ao certo como começou mas, assim que chegava do trabalho, chocalhava o molho de chaves que transporto no bolso e ele aparecia. Trazia, por vezes, uma ou outra gata para o jantar mas, inevitavelmente, com o tempo - cedo ou mais tarde - desapareciam ou morriam. Desde os atropelamentos, aos envenenamentos, ataques de cães ou de outros gatos, as doenças, até às intempéries ou às noites em que o frio corrói os ossos. Não é fácil a vida de vira-lata. Houve dias a fio em que, também ele, não aparecia e o chocalhar das chaves não tinha a magia para abrir o portal do Universo da casa dos gatos.

 

Em 2014 a minha filha nasceu. Depois, com dois anos e esporadicamente, ia comigo até à garagem e, juntos, levávamos ração ao Amarelo. A Matilde achava-lhe piada e tentava agarra-lo pela cauda, obrigando-o a praticar manobras evasivas e exercícios de tolerância. Os anos foram passando e houve momentos – poucos - em que aparecia mais amolgado pelas contingências da vida. Nessas alturas, como um traidor, capturava-o e levava-o à veterinária da minha gata. Era resiliente e recuperava sempre para, de novo, voltar às ruas. Num desses momentos experimentei leva-lo para casa mas a sua identidade estava refém das ruínas e era mais forte que o conforto de quatro paredes e um teto. Deixei-o ir.

 

Passados mais uns anos, em que também eu não estava na melhor fase da vida, começou a adoecer e a aparecer com menos regularidade. Até que um dia, enquanto passeava com a Matilde, veio ter connosco, visivelmente debilitado. De uma forma displicente, amaciei-lhe o pelo e continuamos. Hoje, creio, foi a forma de se despedir. Desde esse instante, nunca mais o vi. Há portas que se fecham e nenhuma chave consegue abrir. Hoje embriago-me de melancolia porque não são apenas as ruínas da casa dos gatos que estão vazias. Pouco tempo depois estava a iniciar o processo de divórcio e a pandemia dava os primeiros sinais de que seria algo sério.

 

Deste lado da rua, teimo em não me render à condenação do tempo.

Casal

Fevereiro 20, 2023

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São curvas sinuosas,

a cama onde nos deitamos.

Ondas suaves e vigorosas,

em que ébrios mergulhamos.

 

São etéreas as colinas,

que escalamos e descemos.

Serpenteando danças felinas,

rumo a sítios que não sabemos.

 

Por estradas e descaminhos,

entre mistérios e exotismo.

Percorremos gigantes e moinhos,

misturamos realidades e quixotismo.

 

Somos um tórrido deserto.

Pouca é a flora que brota.

Eu: não sei quem sou ao certo.

Tu: és apenas e tão-só uma mota.

Não é Normal

Dezembro 21, 2022

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Fecho o mundo nos muros da cabeça.
Assim é menos custoso.
Que toda a Física me obedeça!
Que as desculpas perdoem o leproso.

Estranho e pesado autismo.
Esmagadora força gravitacional.
Ancora que aprisiona no abismo.
Ferida que me faz marginal.

Trilhos levam a nenhum lado.
Tempo escorre sem norte.
Quadrado, todo eu sou fado.
Calado, todo eu sou morte.

Se as nuvens se dissipassem.
- Essas mesmas que inventei.
Se as loucuras me libertassem!
...
Houvesse sanidade. Já a gastei.

Ontem Poesia, Hoje Prosa

Fevereiro 09, 2022

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Estávamos no início de 2013. A minha cabeça procurava, dentro da azáfama, pequenos momentos de solidão. Precisava de pensar e procurar condensar, em poucas palavras, a magia daquele dia. Queria tornar o nosso casamento ainda mais especial e que te sentisses a mais especial. Queria criar uma memória que nos unisse para sempre.

Enquanto falava e sorria, sem que ninguém suspeitasse, uma parte de mim ausentou-se. Desajeitadamente, procurava atar emoções esbaforidas a um anzol enferrujado de pensamentos. As palavras, contudo, não mordiam e a faina não terá sido a melhor. A pressão e o medo de não estar à altura do momento eram esmagadores e, como sabes, sempre tive a propensão para falhar nos momentos realmente importantes.

Levantamos as taças de champanhe e o esquisso que, em pânico rabisquei na mente, ganhou corpo nas palavras arranhadas pelo som da minha voz:

"Nem todos os poemas têm rimas e nem todas as rimas são poesia.
Mas a pessoa, ao meu lado, é o poema da minha vida."

Coramos, rimos e bebemos ao "Felizes para sempre".

...

Hoje. Lado a lado, separados pela prosa fria dos papéis do divórcio. Fim.

Que Sono…

Outubro 14, 2021

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A felicidade é um sonho
e, se é um sonho, então estou a dormir.
A desgraça é um pesadelo
e, se é um pesadelo, então estou a dormir.
Mas a felicidade não parece real
e a desgraça é demasiado real.

Nesta insónia de volver e revolver,
neste abrir e fechar de olhos sem ver,
neste cansado modo de escrever,
fica o inconformismo conformado,
o aforismo bem vincado:

Da desgraça não consigo acordar,
da felicidade não evito o despertar.

Anel Real

Outubro 03, 2021

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Um dia contaram-me uma história.
Em poucas palavras era mais ou menos assim:

«Há muito tempo, num reino distante, havia um rei que tinha abandonado a alegria para mergulhar numa densa tristeza.
Passaram muitos dias sem que nada ou ninguém o conseguisse arrancar às trevas.
Até que, por Decreto Real, foram convocados todos os sábios para ajudarem o "pobre" soberano.
Um por um, os sábios foram tentando e falhando, até que chegou um estranho mago nunca antes visto por aquelas terras.
O enigmático homem segurou a mão do rei e colocou-lhe um simples anel no dedo.
- Quando a tristeza for insuportável, retire-o. - Foram as secas instruções deixadas antes de desaparecer.
Dia para dia a tristeza aumentava até que se tornou insuportável. O rei lembrou-se do anel que tinha no dedo e retirou-o.
Nada aconteceu.
Então, a meio das lágrimas, algo parecia surgir no interior do objeto.
Uma espécie de mensagem que passara despercebida e que, agora o rei tentava ler, limpando a visão desfocada:

- Isso passa.»

Estou longe de ser rei, apenas sei que a dor e tristeza são reais.
Ao longo da vida tenho retirado o anel muitas vezes, mais do que alguma vez imaginei.
Muitas vezes demora, mas acaba por passar. Depois volta e, porque tudo passa, passará outra vez... e outra vez.

Hoje o anel está fora do dedo.

Bicho da Sede

Março 17, 2021

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Agora percebo:

 

Ninguém me ama,

 

não mais do que me odeio.

 

Um velho mancebo,

 

que se apaga e jamais inflama.

 

Um calhau sem matéria no meio.

 

 

 

Agora percebo:

 

Ninguém me liberta,

 

não mais do que me prendo.

 

Este veneno que bebo,

 

que me afaga no seio da morte certa.

 

Um Ser que não é mas vai parecendo.

 

 

 

Agora percebo:

 

Ninguém me elucida,

 

não mais do que me confundo.

 

As orações ao Verbo,

 

que nunca ressuscitaram vida.

 

Um bicho do fim do mundo.

Espelho, espelho meu...

Dezembro 22, 2020

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Um dia vi um filme sobre um homem comum que escrevia poemas. Depositava-os num pequeno caderno. Quase no fim do filme, perplexo, encontrou as folhas do caderno desfeitas numa infinidade de pedaços irrecuperáveis. Metaforicamente como se um espelho, com a sua personalidade, se tivesse desfeito à sua frente. Um poema é mais que uma memória, uma observação ou um desejo. É, possivelmente, um pedaço da alma de quem o gera.

Sei, empiricamente, que onde falta alma sobra escuridão e vazio. Sei e sinto, concretamente, essa escuridão. Tantas vezes me vejo espelhado em pedaços irrecuperáveis.

Como eu, também um dia, os meus poemas se vão partir. A alma semiperdida diluir-se-á, com tantas outras, num mar de esquecimento e, sem misericórdia, o tempo apagará todas estas linhas. Contudo nada disso importa, pois apenas escrevo para me sentir inteiro e, tudo isto, nas entrelinhas.

Passeios noturnos

Fevereiro 09, 2020

Tem noites em que vou passear o cão.

Às vezes por ele, outras vezes por mim.

Hoje, uma parte de mim que achava morta, mordeu-me… e fui passear o cão.

Tem noites em que a morte vive.

Às vezes por ela, outras vezes por mim.

Hoje mordi-me… e fui passear o cão.

 

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Nevoeiro

Agosto 06, 2019

Chegamos à praia, eu e a bicicleta.

Já não somos novos mas fugitivos de Cronos.

É cedo e uma cortina de nevoeiro cerrado faz-me questionar se estou acordado.

Contemplo o mar: cinzento e sereno.

Um vem e vai de pequenas ondas que cantam como sereias.

Deixo-me seduzir.

A espuma acaricia a areia enquanto me tenta alcançar.

Tudo é simples e, no entanto, tão belo.

Deixo-me estar.

As pegadas unem-se aos passos que não dei.

Deixo-me ir.

A maresia e o orvalho trespassam a máscara e acariciam-me o rosto.

Sinto a alma e, nesse momento, dou por mim menos desacompanhado.

Deixo o ser e deixo-me ser.

Encontro-me.

Mas, com tanto nevoeiro, o mais certo é perder-me.

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Há Caldo Verde e Bifanas

Outubro 02, 2007

Não há nada Caldo Verde nem Bifanas! Apeteceu-me colocar “Há Caldo Verde e Bifanas” no título mas o post não tem nada a ver com isso. Já sei que é defraudar as expectativas mas… pensando bem: alguém, ao entrar neste blog, tinha expectativas?..

 

Geralmente só consigo escrever quando estão reunidas três condições essenciais: tenho de estar deprimido, não posso estar demasiado cansado e a televisão não pode estar a passar os comentários do Marcelo Rebelo de Sousa.

 

Houve aí uns dias em que, de facto, eu não andei deprimido. Até queria escrever e fazia de tudo para me deprimir mas, confesso, os meus esforços goraram-se num rotundo falhanço. Alturas houve em que estive quase a atingir um estado Zen de depressão mas, simplesmente, não me conseguia concentrar o suficiente e perdia a pujança antes de consumar o acto. Lamentável e vergonhoso! Até nisso me sinto inútil... Mas palpita-me que, finalmente, terei conseguido.

 

Sinto-me abatido e hoje, particularmente, triste. Sinto uma enorme vontade de metralhar o vazio da folha com o negro das letras e, ao mesmo tempo, deparo-me com um grande cansaço, em forma de bloqueio, que me causa impotência intelectual (talvez não apenas intelectual, mas isso não é tema para aqui e sim assunto para discutir em local próprio). Não sei como traduzir o que me vai na alma. Não sei como explicar, não é fácil. Sinto-me quase como um espirro aprisionado, como um soluço engasgado. É algo, talvez, como aquelas diarreias intestinais que precisam de explodir mas que se deparam com uma irritante e inesperada prisão de ventre. É essa, sem dúvida, a imagem mais apropriada para definir o meu caótico estado de espírito.

 

Mas a verdade é que me sinto deprimido. A verdade é que me sinto cansado. A verdade é que hoje me sinto tão ausente que, se calhar, até podia ouvir o Marcelo Rebelo de Sousa, discursar durante nove horas, com total apatia e indiferença (ou, vendo bem as coisas e pensando melhor, talvez não!). Há certas coisas que não nos matam mas deitam-nos ao chão. Há certas coisas que magoam. Mas eu não me deixo ir abaixo e há, de facto, certas coisas que magoam só que, da mesma forma que magoam, também saram. Da mesma forma que nós caímos também nos levantamos. É só uma questão de tempo. O tempo é, em última análise, como um xamã: um bom conselheiro e um melhor curandeiro. É bem verdade que hoje me sinto muito abatido mas, amanhã, não sei como me vou sentir (apesar de ter fortes suspeitas). Tenho objectivos a atingir, sonhos a realizar e ambições a materializar. Finalmente sei para onde quero ir. Finalmente sinto que, apesar das dificuldades e dos espinhos, trilho o caminho certo. Há que ser (moderadamente) optimista!

 

Peço desculpa a todos os meus (poucos mas bons) leitores pela minha ausência prolongada. Quero que saibam que, neste intervalo de tempo, não deixei de espreitar os vossos excelentes blogs. Por fim, agradeço todos os simpáticos comentários que me deixaram. Não vos mereço e vocês não merecem o fardo de me aturarem.

 

Atentamente,

ejail.

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