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Março 21, 2025
Ontem, 22 horas e uns salpicos de chuva no para-brisas. Por entre o breu da noite, a couraça cinzenta e fustigada da carrinha, vai abrindo caminho até casa. Embora as mãos repousem sobre o volante, não precisa que a guiem, pois conhece bem o trajeto. É uma vida de repetições e alguns momentos de ilusão. Não resta grande margem para enganos.
Os olhos fixos num horizonte, algures entre a realidade e pensamentos dispersos, absorvem, com apática indiferença, os fracos pontos de luz que se vão desenhando. Noto, por entre as sombras, o frio dos fantasmas a vaguear. Estados de alma que descansam na permeabilidade dos ossos, que se esforçam por sustentar o peso do sono. Por fim, o processo espiritual desagua nas memórias, na saudade e nostalgia de outros tempos e escorre até à inevitável desilusão.
Nunca fui uma pessoa com propensão para a sociabilização e sinto até uma espécie de fobia, ou pelo menos um certo mal-estar, quando tenho que estar em situações sociais. Com mais ou menos dificuldades, vou conseguindo disfarçar – às vezes mal - essa inaptidão, mas é certo, também, que evito a todo o custo esse tipo de situações. Situações sociais começam, para mim, no momento em que estou com alguém e, desde o divórcio, divorciei-me de reparar o eu que ficou destruído. Porque não sei se o consigo fazer e, tão-pouco, se o quero fazer. Porque dei tudo de mim e fiquei vazio, apenas inflado de tristezas. Porque me sinto acabado, inutilizado, ou mesmo inútil, e nem a mim me consigo vender. Porque, por princípio, não gosto de enganar ninguém.
Desde a separação, mudei muito. Muito mais do que poderia supor ou imaginar. Mudei na forma de pensar e sentir as coisas. Fruto da minha educação, era um homem de fé, crente num Deus omnipresente e omnisciente, na existência de um Amor universal, capaz de transcender o infinito e até no livre arbítrio e na capacidade de fazermos escolhas dentro de um plano maior que pudesse dar sentido à existência. Cheguei a acreditar que o Universo poderia conspirar a nosso favor e noutras narrativas com que Paulo Coelho enriqueceu o seu “Alquimista” ou o “Manual do Guerreiro da Luz”. Cheguei a comover-me com a história de Hermann Hesse, sobre o brâmane “Siddhartha”. Inspirei-me nos heróis dos manuscritos da Bíblia e na palavra de Deus, escrita pelos homens. Acreditei em mensageiros divinos e nas construções de uns poucos filósofos. Confiei no amor que, ingenuamente, acreditei que seria para sempre. Procurava até encontrar-me, seja lá o que isso for, mas – para o bem e para o mal – foi objetivo que nunca consegui alcançar. Hoje evito, a todo o custo, encontrar esse gajo. Não que, ao dia de hoje, seja uma melhor pessoa, apenas um asqueroso diferente.
Não sei se Deus existe, ou se existiu. Se, no alto de um penhasco divino, há alguém preocupado com a nossa pequenez e micro-estupidez. Não sei se a morte nos evolui para seres de luz e muito menos qual a cor dessa luz, ou se regredimos para renascermos em insetos pouco apetecíveis. Não sei nada. Dentro de todas as incertezas, o menos incerto, é que talvez nunca saberei. Deus, seja qual for a forma com que o pintemos, é um porto seguro, para nos refugiarmos dos medos e encontrarmos algum conforto. Serve para enfrentarmos a nossa finitude e insignificância perante a escala de grandeza que nos rodeia. Já o Amor, como conceito universal e perene, parece ser algo criado para nos inspirar e poder conduzir à superação. Algo que, em última análise, por entre quaisquer que sejam as dificuldades ou ódios, conduzirá ao triunfo do “bem” sobre o “mal”. O Amor como um catalisador da vida que irá potenciar a resolução de discórdias, a união de casais, de famílias ou, mesmo, da humanidade. O Amor como ferramenta para vencer a dor, a solidão e a morte. Parece-me tão lógico que a humanidade, pelo sentimento de abandono, de medo do desconhecido e da guilhotina do tempo, tenha criado histórias para tentar dar algum sentido a toda estra desagregação e frio. Parece tudo muito mau e sombrio, mas é muito possível que esta minha visão esteja errada, da mesma forma que eu nunca estive certo. É, no entanto, aquilo que sinto como menos mentiroso dentro no meu interior e não gosto de enganar ninguém, a começar por mim.
Vejo-me como uma pequena peça, de um puzzle gigante, que não consegue encaixar. Sinto, dentro de mim, uma grande dor, que não consigo apagar. Questiono-me como alguém, que tinha demasiadas certezas, conseguiu acabar com tantas dúvidas. Penso que o que não nos mata, não nos torna mais fortes, apenas diferentes. Sinto que tinha ilusões e princípios a mais e que, talvez por isso, após o divórcio, fui eu que fiquei na lama… e ainda falo disso. Hoje tenho menos ilusões, muito menos certezas e ainda menos princípios.
Para acabar esta lamechice que já me enjoa, talvez sobre um princípio. Algo menos desonesto, como: não fazer aos outros o que não quero que me façam a mim e, se possível, fazer o que gostava que fizessem por mim. Mas duvidar, sempre duvidar! Porque os princípios podem, muito bem, ser o nosso fim.