F(r)ases
Março 31, 2023
"A beleza está nos olhos de quem vê"
Frase visionária. Ouvi-a pela primeira vez, há muitos anos, num programa de rádio matinal. Pouco mais me recordo desse episódio, a não ser que incidia nas belezas da Serra do Picoto. De qualquer forma, o concreto é largamente ultrapassado pela universalidade do pensamento que está na génese da máxima. Filosofia condensada num singelo abrigo poético. No entanto - e sendo, aos meus olhos, uma bela construção lírica que nos conduz a uma pertinente reflexão - não posso deixar de lhe reconhecer um potencial ponto cego. O ponto em que, ao navegarmos a frase, chegamos aos “olhos” e ao sujeito que “vê”. Por muito abstrato que esse sujeito possa ser, é convencionado que tem olhos e que os mesmos são funcionais. É aí que reside a potencial cegueira. Mas o aparente ponto cego pode ser desfeito, se entendermos “olhos” como órgãos da Alma e o que o sujeito “vê” como uma elevação do pensamento ou uma espécie de capacidade espiritual. De notar que, nesta reflexão, “Alma” poderá ter interpretação livre, interessando-me apenas transmitir a essência e não entrar em discussões dogmáticas. A frase fará, portanto, menos sentido num mundo de Vishnu e parece ganhar corpo onde o corpo se rende ao divino. Em última análise, caímos no universo das perspetivas e camadas de pensamento. O mais importante é, parece-me, o ponto de partida e a viagem que o aforismo nos pode proporcionar.
Seja qual for a serra que subo, vejo, sempre, coisas diferentes. Não só por que as coisas mudam, mas por que eu próprio não me mantenho constante. Não espero encontrar Sarças Ardentes, com sacros mandamentos, mas não deixo de me sentir num ato solene, quase sagrado. O conforto de um pequeno retiro no espaço e no tempo. Carrego a subida com paisagens desoladas que, a traços de carvão, se desenharam dentro mim. Mas ensaco, também, uma ténue esperança que me leva a procurar novas matizes.
Particularmente, nunca subi a Serra do Picoto e desconheço o que poderia ver. Talvez um dia, quem sabe, surja a oportunidade e vontade de o fazer. Cada serra terá as suas belezas e feiuras. Cada uma será única e será única para cada um mas, para mim, independentemente da serra e do que outros vêm, sei o que me aguarda:
- No cimo da serra mora uma igreja.