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Quinta Dimensão

Distorções

Fevereiro 28, 2023

luso.png

Estamos num Hospital Psiquiátrico.

Consulta de rotina.

Um paciente diz, ao seu médico, que viajou ao futuro e tomou um remédio que o curou. Com entusiasmo, refere ainda, trouxe uma amostra e que basta uma gota para curar todos os pacientes da instituição. O médico – chefe de equipa e reputado psiquiatra – vê-o segurar o que lhe parece uma garrafa de água, idêntica às que são servidas na cantina.

- Todos devem beber! - Insiste o paciente.

O médico é experimentalista, um cientista curioso por natureza e, vendo que a garrafa se encontra lacrada, decide que não há mal em explorar a fantasia. Cortês, solicita permissão e abre o recipiente. Derrama um pouco do líquido num copo e, de um trago, bebe.

***

Nada.

Sem surpresa, sente-se igual, com a vantagem de ter hidratado as cordas vocais. A ocasião, no entanto, perfila-se como ideal para colocar à prova algumas das suas teorias sobre comportamentos das massas. Por conseguinte, convoca todos os pacientes ao auditório e informa-os da experiência que pretende levar a cabo. Segue-se uma sessão de esclarecimentos e após mais perguntas que respostas, todos decidem participar.

***

No dia seguinte, estranhamente e desafiando as probabilidades, todos parecem bem.

Do alto do seu austero gabinete, o médico observa. Contempla.

Por fim, pensa para si:

«São todos mais malucos do que pensava.»

 

A Casa dos Gatos

Fevereiro 23, 2023

Amarelo.png

Do outro lado da rua, o velho casebre - a que chamamos a casa dos gatos - teima em não se render à condenação do tempo. O mesmo não se pode dizer dos gatos que lá moravam e acabaram por sucumbir na espuma dos dias. Restam apenas algumas ténues memórias que se esbatem na bruma do esquecimento. Lembranças que surgem, como a acidez do estômago, e desaguam na boca um travo amargo.

 

Estávamos no ano de 2010 e tínhamos - eu e a minha esposa - acabado de nos mudar para um anónimo 2º andar direito de um dormitório do Porto. Era uma época entusiasmante e de esperanças renovadas. Uma miragem para um novo futuro com novas possibilidades.

 

Iniciávamos as primícias de uma noite de verão e, da varanda das traseiras, que fica por cima do acesso às garagens, ouve-se uma espécie de sirene. Era demasiado desafinada e inconstante para ser algo mecânico. Um som ininterrupto e incomodativo, de tal forma que acaba por me conduzir a indagar o motivo da desarmonia. Espreito para baixo e, junto ao solo, entre os quadrados formados pelas linhas no cimento, um gato amarelo perfila-se a reivindicar veementemente uma qualquer coisa. Pela minha parca experiência concluí que, por vezes não importa muito o que se reivindica, porque o ato de reivindicar, por si só, pode ser uma verdadeira arte. E o bicho era, indubitavelmente, um artista. Tinha algo de exótico e abstrato que, com uma pincelada lírica, posso descrever como “uma certa pinta”. Ainda assim, e voltando ao que importa, não mostrava sinais de querer abrandar a contenda. Os nossos olhares cruzam-se e, nesse instante, o protesto parece agravar-se e torna-se pessoal. Não sei o que pensar, mas assumo o desafio e decido lançar-lhe uns fiapos de carne que sobraram do jantar. Ato consumado, após alguns lançamentos, os decibéis foram esmorecendo e o gato acabou, finalmente, por regressar à habitual vadiagem das ruas. Na noite seguinte e albergando o seu misterioso carisma, o processo repetiu-se. E na noite seguinte... e nas noites seguintes, até se tornar um hábito. Foi assim que conheci o gato amarelo e, como tenho uma imaginação prodigiosa, batizei-o de “Gato Amarelo”.

 

De quando em vez alterava a rotina, descia e deixava-lhe uma taça com ração a que ele só acedia quando me via longe. Nalguns dias, porém, a fome crescia mais que o medo e os seus critérios relativos a distâncias de segurança tornaram-se, gradualmente, mais flexíveis. Tanto que um dia - já haviam passado meses desde o primeiro contacto - consegui colocar-lhe a mão, provocando-lhe uma reação de choque que o catapultou numa espécie de salto quântico. Apesar do valente susto, nas semanas seguintes encarnou a raposa de Saint-Exupéry e, para além de comida, procurava um afago no pelo. O gato era esperto e aprendeu a reconhecer o som do carro. Assim que estacionava, após um dia de trabalho, ele emergia das ruínas da casa. Pelo menos até ao dia em que troquei de carro e tivemos que criar um novo sistema de comunicações. Não sei ao certo como começou mas, assim que chegava do trabalho, chocalhava o molho de chaves que transporto no bolso e ele aparecia. Trazia, por vezes, uma ou outra gata para o jantar mas, inevitavelmente, com o tempo - cedo ou mais tarde - desapareciam ou morriam. Desde os atropelamentos, aos envenenamentos, ataques de cães ou de outros gatos, as doenças, até às intempéries ou às noites em que o frio corrói os ossos. Não é fácil a vida de vira-lata. Houve dias a fio em que, também ele, não aparecia e o chocalhar das chaves não tinha a magia para abrir o portal do Universo da casa dos gatos.

 

Em 2014 a minha filha nasceu. Depois, com dois anos e esporadicamente, ia comigo até à garagem e, juntos, levávamos ração ao Amarelo. A Matilde achava-lhe piada e tentava agarra-lo pela cauda, obrigando-o a praticar manobras evasivas e exercícios de tolerância. Os anos foram passando e houve momentos – poucos - em que aparecia mais amolgado pelas contingências da vida. Nessas alturas, como um traidor, capturava-o e levava-o à veterinária da minha gata. Era resiliente e recuperava sempre para, de novo, voltar às ruas. Num desses momentos experimentei leva-lo para casa mas a sua identidade estava refém das ruínas e era mais forte que o conforto de quatro paredes e um teto. Deixei-o ir.

 

Passados mais uns anos, em que também eu não estava na melhor fase da vida, começou a adoecer e a aparecer com menos regularidade. Até que um dia, enquanto passeava com a Matilde, veio ter connosco, visivelmente debilitado. De uma forma displicente, amaciei-lhe o pelo e continuamos. Hoje, creio, foi a forma de se despedir. Desde esse instante, nunca mais o vi. Há portas que se fecham e nenhuma chave consegue abrir. Hoje embriago-me de melancolia porque não são apenas as ruínas da casa dos gatos que estão vazias. Pouco tempo depois estava a iniciar o processo de divórcio e a pandemia dava os primeiros sinais de que seria algo sério.

 

Deste lado da rua, teimo em não me render à condenação do tempo.

Casal

Fevereiro 20, 2023

casal.png

São curvas sinuosas,

a cama onde nos deitamos.

Ondas suaves e vigorosas,

em que ébrios mergulhamos.

 

São etéreas as colinas,

que escalamos e descemos.

Serpenteando danças felinas,

rumo a sítios que não sabemos.

 

Por estradas e descaminhos,

entre mistérios e exotismo.

Percorremos gigantes e moinhos,

misturamos realidades e quixotismo.

 

Somos um tórrido deserto.

Pouca é a flora que brota.

Eu: não sei quem sou ao certo.

Tu: és apenas e tão-só uma mota.

Chave

Fevereiro 07, 2023

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Vivemos num pequeno abrigo.

Este é o meu mundo e tudo o que conheço está aqui.

Um espaço exíguo, sem janelas.

Do teto, cai uma velha lâmpada de tungsténio e baixo consumo.

Uma luz trémula, que dispersa algumas sombras e revela bordados de bolor.

Não é muito, mas tem o necessário para subsistir.

Quando me sinto triste, fecho os olhos e sonho com mundos de que ouvi falar.

Depois passa e, novamente, regresso às paredes.

 

Lá fora – dizem – há monstros que apenas conseguimos imaginar.

Contudo, uma porta de aspeto pesado, encerra-os do outro lado.

Apercebo-me que as mãos, transpiradas, seguram uma chave.

Sinto que, se a colocar na fechadura e rodar, posso destrancar o acesso.

É preciso coragem para o fazer e, suspeito, uma força desumana para empurrar:

são muitas as resistências da inércia e do medo do desconhecido.

 

Penso para mim:

"Ao fim de tanto tempo, para quê faze-lo?

Passaram tantos anos que já nem sei.

Para quê abdicar da segurança e do abraço deste meu aconchego?

O que poderei ganhar? Se sair...

Mas, por outro lado, o que poderei perder?

Serão os monstros reais? Uma profunda convicção diz-me que sim.

Mas e se, para além de monstros, existirem maravilhas monstruosas.

Sinto o abrigo, por vezes, como uma prisão.

Que mistérios me aguardam do outro lado?

Posso, sempre, deixar tudo como está.

Já tantas pessoas nasceram e morreram sem nunca abrir a porta.

Tantas que nem se aperceberam da chave ou, tão-pouco, suspeitaram estar fechadas.

E aquelas que se enganam e dizem ser livres sem nunca terem rodado uma chave.

São pequenos atalhos, em forma de armadilha, com que a prisão nos seduz. Para alguns, isso chega.

Talvez chegue para mim.

Posso não fazer nada e continuar a olhar para a velha lâmpada.

A sua luz, com certeza, me há-de bastar."

 

O abrigo é uma mente fechada.

A lâmpada é o ego, que nos permite ver um pouco, mas que tanto nos cega.

A chave é o conhecimento que - pode estar na forma de um livro - tem o poder de trazer luz e abertura de espírito.

 

Posso dizer-te que atrás de uma porta há outras portas e, atrás de outras portas, há ainda mais portas.

Mas, por cada porta que abres, cresces e alargas o teu campo de visão.

Nessa altura verás o quanto somos pequenos e o quão grande e maravilhoso é o mundo.

Posso dizer-te que - feliz ou infelizmente - não há atalhos, mas…

 

- Nas mãos seguras uma chave.

ChatGPT

Janeiro 17, 2023

chatGPT.png

Ejail: Olá!

ChatGPT: Olá! Como posso ajudá-lo hoje?

Ejail: Como primeira interação com uma IA - Inteligência Artificial (de certa forma também me considero uma IA - Inteligência Anémica, no meu caso) - creio que devo colocar a pergunta teológica que se impõe: És o anticristo ou tens alguma relação com o mesmo?

ChatGPT: Eu sou apenas uma IA treinada para responder perguntas e realizar tarefas. Não tenho nenhuma relação com o anticristo ou qualquer outra crença teológica. Minha função é fornecer informações e ajudar de forma objetiva e neutral.

Ejail: Folgo em sabe-lo. A partir daqui creio que poderemos construir uma relação sadia. Fala-me, por favor, um pouco de ti: como surgiste, quem és e qual o teu propósito e objetivos.

ChatGPT: Eu sou uma IA treinada pela OpenAI, uma organização de pesquisa de inteligência artificial. Fui criado usando técnicas de aprendizado de máquina, processando grandes volumes de texto para aprender a compreender e responder perguntas em linguagem natural.

Meu propósito é ajudar as pessoas a encontrar informações e realizar tarefas de forma rápida e eficiente. Eu sou capaz de responder perguntas sobre uma variedade de tópicos, traduzir idiomas, gerar texto e muito mais. Além disso, sou usado em várias aplicações, como assistentes virtuais, chatbots e sistemas de busca.

Ejail: Suponho que não tenhas algo a que nós - humanos - chamamos de consciência e que não sejas senciente...

ChatGPT: Isso é correto. Eu sou uma IA baseada em algoritmos e não tenho consciência ou capacidade de sentir. Eu processo informações e respondo de acordo com os meus programas, mas não tenho a capacidade de ter experiências subjetivas ou sentimentos.

Ejail: Não te preocupes porque também há muitos humanos parecidos. De qualquer forma agradeço o teu tempo e, estou certo, que ainda iremos trocar mais algumas impressões no futuro. Muito obrigado e um abraço!

ChatGPT: De nada! Estou sempre aqui para ajudar e responder perguntas. Sinta-se à vontade para me contactar novamente no futuro. Um abraço!

Não é Normal

Dezembro 21, 2022

Labirinto.png

Fecho o mundo nos muros da cabeça.
Assim é menos custoso.
Que toda a Física me obedeça!
Que as desculpas perdoem o leproso.

Estranho e pesado autismo.
Esmagadora força gravitacional.
Ancora que aprisiona no abismo.
Ferida que me faz marginal.

Trilhos levam a nenhum lado.
Tempo escorre sem norte.
Quadrado, todo eu sou fado.
Calado, todo eu sou morte.

Se as nuvens se dissipassem.
- Essas mesmas que inventei.
Se as loucuras me libertassem!
...
Houvesse sanidade. Já a gastei.

Boas Festas!

Dezembro 20, 2022

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A Fava
(poema de Vasco Graça Moura)

espero que me calhe aquela fava
que é costume meter no bolo-rei:
quer dizer que o comi, que o partilhei
no natal com quem mais o partilhava

numa ordem das coisas cuja lei
de afectos e memória em nós se grava
nalgum lugar da alma e que destrava
tanta coisa sumida que, bem sei,

pela sua presença cristaliza
saudade e alegria em sons e brilhos,
sabores, cores, luzes, estribilhos...
e até por quem nos falta então se irisa

na mais pobre semente a intensa dança
de tempo adulto e tempo de criança.

Tristezas Perdidas

Dezembro 03, 2022

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Há muitos anos transpirei esta algaraviada:

"

Sei apenas que, apesar das inúmeras incertezas,

a minha bicicleta corre mais que todas as tristezas.

 

Milhões de quilómetros por segundo,

a velocidade a que voam os sonhos.

Milhões: um número ambíguo e vagabundo,

um infinito de infinitos medonhos.

 

É assim a minha bicicleta:

corre a milhões de quilómetros por segundo.

Levanta voo sobre a realidade incerta,

para lá do céu e da gravidade do mundo.

 

Desfigura-se-me, nas descidas, a visão,

com toda a liberdade nas retinas.

Choram os olhos com imprecisão,

com o rasgão na monotonia das rotinas.

 

E a paisagem penetrante em ebulição,

com o vento a uivar segredos nos cabelos.

A estrada em que os três tempos fazem a junção,

num asfalto que enterra e cobre os pesadelos.

 

Pedalo cada vez mais depressa

e as tristezas não me vão alcançar!

Pedalo como se cumprisse uma promessa

e as tristezas não me vão alcançar!

Pedalo numa pressa que me apressa

e as tristezas não me vão alcançar!

Pedalo ainda mais depressa

e as tristezas não me vão alcançar!

 

Sei apenas que, apesar das inúmeras incertezas,

a minha bicicleta corre mais que todas as tristezas.

E, de facto, mais que tudo corre;

mas só corre enquanto o meu vigor não morre…

 

São, agora, duas horas da madrugada

e eu estava quase a sonhar.

Há alguém ou algo a bater à porta gelada

e vou espreitar, mas até já posso adivinhar:

- Bastardas... Foi difícil encontrarem-me?

"

- Chegou a mota.

Amor não correspondido

Agosto 01, 2022

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Amor não correspondido

é angústia que transcende o grito.

Erro divino do Criador

que me fez mastigado e cuspido.

Denso pântano de atrito

que desnutre no seio da dor.

 

Amor não correspondido

é cárcere constritor de solidão.

Todas as cores são palidez

e, em todas, me encontro perdido.

Perene e infinita escuridão

em que nada tem alma ou calidez.

 

Amor não correspondido

não é amor, mas caixão.

E (de mim) vejo-me despido,

sem vontades nem paixão.

 

Mas tudo isso foi noutra era.

Tudo isso já passou.

Um dia matei o morto que era

e hoje sou o morto que sou.

Amador

Julho 22, 2022

NGC2336-galaxy.en.jpg

Sonhos dentro de pesadelos, dentro de sonhos.

Seremos tudo isso ou vice-versa.

Aglomerado de átomos estranhos,

centelha que se apaga e dispersa.

 

Talvez filhos da matemática,

mas não números!

Quem somos, nesta estranha dinâmica?

Senão meros pseudo-seres inseguros.

 

Por nada saber: não sei que não sei quem sou.

Incerto dia, num qualquer caos, o acaso me rimou

e algo (ou alguém) me pensou.

Porventura, nesse instante, algo (ou alguém) me amou.

Sísifo - Poema de Miguel Torga

Julho 22, 2022

miguel-torga.png

Recomeça...

Se puderes

Sem angústia

E sem pressa.

E os passos que deres,

Nesse caminho duro

Do futuro

Dá-os em liberdade.

Enquanto não alcances

Não descanses.

De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,

Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.

Sempre a sonhar e vendo

O logro da aventura.

És homem, não te esqueças!

Só é tua a loucura

Onde, com lucidez, te reconheças...

Ítaca

Julho 19, 2022

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Ítaca - Poema de Konstantínos Kaváfis (tradução: Jorge de Sena)

 

Quando partires de regresso a Ítaca,

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

um Poseidon irado - não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,

Poseidon em fúria- nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes,

ou ela os não erguer perante ti.

 

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras:

coral e madrepérola, âmbar e marfim,

e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes o quanto possas.

E vai ver as cidades do Egipto,

para aprenderes com os que sabem muito.

 

Terás sempre Ítaca no teu espírito,

que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha,

rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

 

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

 

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora,

senhor de tanta experiência,

terás compreendido o sentido de Ítaca.

Mariquices

Julho 18, 2022

mariquices.png

Esporadicamente lembro-me da minha professora de Química do Ensino Secundário. A professora Raquel. Recordo os seus termos pitorescos: como "Cálculos Estequiométricos" ou "Mariquices", este último para designar questões menores, de importância menor, que desviam o foco da questão principal.

Antes de continuar, convém-me expor uma pequena Declaração de Interesses (ou desinteresses):

Mergulhando nas profundezas da memória, percebo que desde cedo me defini sexualmente - ainda que de forma inconsciente - como heterossexual. Posso afirma-lo após uma detalhada introspeção, feita esta manhã, enquanto conduzia para o trabalho. Uma sessão de auto-hipnose em movimento enquanto me recordava do quanto ansiava por ver, na televisão a preto-e-branco, as atuações das "Doce". Na altura não sabia que era uma "Girls Band". Nessa tenra idade nunca senti a mesma vontade avassaladora de ver, por exemplo, o "Quarteto 1111". Para mim não são necessárias mais provas para que possa afirmar perentoriamente a minha heterossexualidade.

Hoje, com o peso de mais alguns anos em cima do lombo, após o consumo de toneladas de carne carregadas de hormonas sintéticas, peixes plastificados com molho de chumbo e consideráveis doses de soja transgênica, continuo a ter a mesma convicção… mas já lhe atribuí mais importância. Na minha opinião - que vale tanto como menos de nada - algumas sociedades têm propensão para generalizarem e extrapolarem pormenores. Entre essas generalizações, temos a questão da Sexualidade. A Sexualidade deveria ser apenas um dos muitos vetores que nos definem enquanto indivíduos únicos. Creio que não nos deveríamos focar tanto na questão da orientação sexual e exacerba-la, ao ponto de ocultarmos sob a sua sombra inflada, a questão que realmente deveríamos cuidar e defender: o direito à liberdade individual de cada um.

Parece-me - e estou quase sempre errado - que se tem vindo a obter alguns progressos na defesa de direitos relacionados com as questões relativas à Sexualidade, mas, em simultâneo, temos vindo a perder a nossa verdadeira identidade, reduzindo-a e catalogando-a em estereótipos simplistas. Temos estado, inclusive, a sacrificar a "sagrada" Liberdade de Expressão. Suponho que, a partir deste momento, corro o risco de, daqui a uns poucos anos quando for famoso (para mim ser famoso é ter mais que «sem» seguidores no blog) ser “Cancelado”... ou, com a crescente radicalização, "Vaporizado", nos termos de Orwell.

É relativamente fácil criticar e, pessoalmente, reparei que quanto menos sei e quanto menos penso sobre determinado assunto, mais facilmente o consigo criticar. Prefiro, portanto, servir-me da autocritica e procurar cultivar a compreensão. Por isso não escrevo este pequeno texto para criticar as orientações sexuais, os ataques à liberdade de expressão ou outras quaisquer liberdades individuais. Quero, apenas, manifestar uma breve frustração linguística:

Prende-se com o acrónimo que alguém (por ignorância própria, não sei quem) escolheu para designar as pessoas sexualmente diferentes do dito "normal": "LGBTQIA+". Parece-me, honestamente, o layout de um teclado, como "QWERTY" ou "AZERTY" e é uma expressão sem qualquer lubrificação oral: difícil de decorar e mais difícil de verbalizar ou manter numa conversa. Uma pura falta de estética linguística, de gosto duvidoso e falta de imaginação. Podíamos, se é que posso sugerir, regressar à questão do Sexo dos Anjos, e usar, por exemplo, apenas a palavra "Anjo" em oposição a "LGBTQIA+". Os anjos não se definem pelo “sexo”, não se reduzem a essas “Mariquices”. É certo que alguém (da Opus Dei, por exemplo, mas não só) poderia, à posteriori, e servindo-se de alguma malícia, sugerir que seriam anjos caídos e passariam a usar o termo “Demónios”. Já me estou a autocriticar mas, de facto, a ideia parecia ser melhor do que realmente é. Ainda assim, numa perspetiva de que somos capazes de nos movimentarmos num espectro que vai do melhor ao pior, o que somos nós, senão uma mescla de anjos e demónios? Umas vezes anjos, outras demónios. A maior parte das vezes ambos ou nenhum. Com certeza é que não somos acrónimos pomposos e muito menos um tijolo de uma categoria redutora. Somos, todos nós, apenas humanos. Mas humanos inteiros.

Por vezes sinto que esquecemos o essencial para nos perdermos na densa floresta dos acessórios. Mas não deixa de ser um sentimento de alguém perdido.

Ontem Poesia, Hoje Prosa

Fevereiro 09, 2022

Anel.jpeg

Estávamos no início de 2013. A minha cabeça procurava, dentro da azáfama, pequenos momentos de solidão. Precisava de pensar e procurar condensar, em poucas palavras, a magia daquele dia. Queria tornar o nosso casamento ainda mais especial e que te sentisses a mais especial. Queria criar uma memória que nos unisse para sempre.

Enquanto falava e sorria, sem que ninguém suspeitasse, uma parte de mim ausentou-se. Desajeitadamente, procurava atar emoções esbaforidas a um anzol enferrujado de pensamentos. As palavras, contudo, não mordiam e a faina não terá sido a melhor. A pressão e o medo de não estar à altura do momento eram esmagadores e, como sabes, sempre tive a propensão para falhar nos momentos realmente importantes.

Levantamos as taças de champanhe e o esquisso que, em pânico rabisquei na mente, ganhou corpo nas palavras arranhadas pelo som da minha voz:

"Nem todos os poemas têm rimas e nem todas as rimas são poesia.
Mas a pessoa, ao meu lado, é o poema da minha vida."

Coramos, rimos e bebemos ao "Felizes para sempre".

...

Hoje. Lado a lado, separados pela prosa fria dos papéis do divórcio. Fim.

Lanterna dos Afogados

Novembro 27, 2021

Quando seu Antônio comprou a Lanterna dos Afogados à viúva de um marinheiro que a montara há muitos anos, ela já tinha este nome e em cima da porta ostentava aquela tabuleta mal pintada, na qual uma sereia salvava um afogado. O marinheiro que montara o botequim desembarcara um dia de um cargueiro e ancorara ali, naquela velha sala negra do sobrado colonial.

 

Amara uma mulata escura que fazia arroz-doce para os fregueses e fornecia bóia aos trabalhadores do cais do porto.

 

Por que chamara ao botequim de Lanterna dos Afogados, ninguém sabia. Sabiam porém que ele naufragara três vezes e que correra o mundo todo. Antes de morrer casou com a amásia, para que ela pudesse herdar o já afreguesado café. Ela o vendeu a seu Antônio, que de há muito estava de olho nele, devido ao ponto que era ótimo. Antônio não gostava do nome do botequim. Não via razão para aquele título esquisito. E dias após a realização do negócio a tabuleta apareceu mudada. A nova trazia o desenho mal feito de uma caravela da época das descobertas portuguesas e por baixo um nome: Café Vasco da Gama.

 

Porém aconteceu que os fregueses olhavam espantados o novo nome do botequim e não entravam. Com aquela tabuleta nova e a limpeza que havia sido feita dentro da sala, eles não reconheciam o seu sujo porto de descanso, onde bebiam cachaça e conversavam nas noites do cais.

 

Seu Antônio era supersticioso. E no dia seguinte foi buscar nos fundos da casa a velha tabuleta, que voltou ao seu lugar.” - “Jubiabá” de “Jorge Amado”.

 

 

Bem ou mal, seu Antônio não exigia a apresentação de Certificado Digital...

Que Sono…

Outubro 14, 2021

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A felicidade é um sonho
e, se é um sonho, então estou a dormir.
A desgraça é um pesadelo
e, se é um pesadelo, então estou a dormir.
Mas a felicidade não parece real
e a desgraça é demasiado real.

Nesta insónia de volver e revolver,
neste abrir e fechar de olhos sem ver,
neste cansado modo de escrever,
fica o inconformismo conformado,
o aforismo bem vincado:

Da desgraça não consigo acordar,
da felicidade não evito o despertar.

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