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Quinta Dimensão

Distorções

Fevereiro 28, 2023

luso.png

Estamos num Hospital Psiquiátrico.

Consulta de rotina.

Um paciente diz, ao seu médico, que viajou ao futuro e tomou um remédio que o curou. Com entusiasmo, refere ainda, trouxe uma amostra e que basta uma gota para curar todos os pacientes da instituição. O médico – chefe de equipa e reputado psiquiatra – vê-o segurar o que lhe parece uma garrafa de água, idêntica às que são servidas na cantina.

- Todos devem beber! - Insiste o paciente.

O médico é experimentalista, um cientista curioso por natureza e, vendo que a garrafa se encontra lacrada, decide que não há mal em explorar a fantasia. Cortês, solicita permissão e abre o recipiente. Derrama um pouco do líquido num copo e, de um trago, bebe.

***

Nada.

Sem surpresa, sente-se igual, com a vantagem de ter hidratado as cordas vocais. A ocasião, no entanto, perfila-se como ideal para colocar à prova algumas das suas teorias sobre comportamentos das massas. Por conseguinte, convoca todos os pacientes ao auditório e informa-os da experiência que pretende levar a cabo. Segue-se uma sessão de esclarecimentos e após mais perguntas que respostas, todos decidem participar.

***

No dia seguinte, estranhamente e desafiando as probabilidades, todos parecem bem.

Do alto do seu austero gabinete, o médico observa. Contempla.

Por fim, pensa para si:

«São todos mais malucos do que pensava.»

 

A Casa dos Gatos

Fevereiro 23, 2023

Amarelo.png

Do outro lado da rua, o velho casebre - a que chamamos a casa dos gatos - teima em não se render à condenação do tempo. O mesmo não se pode dizer dos gatos que lá moravam e acabaram por sucumbir na espuma dos dias. Restam apenas algumas ténues memórias que se esbatem na bruma do esquecimento. Lembranças que surgem, como a acidez do estômago, e desaguam na boca um travo amargo.

 

Estávamos no ano de 2010 e tínhamos - eu e a minha esposa - acabado de nos mudar para um anónimo 2º andar direito de um dormitório do Porto. Era uma época entusiasmante e de esperanças renovadas. Uma miragem para um novo futuro com novas possibilidades.

 

Iniciávamos as primícias de uma noite de verão e, da varanda das traseiras, que fica por cima do acesso às garagens, ouve-se uma espécie de sirene. Era demasiado desafinada e inconstante para ser algo mecânico. Um som ininterrupto e incomodativo, de tal forma que acaba por me conduzir a indagar o motivo da desarmonia. Espreito para baixo e, junto ao solo, entre os quadrados formados pelas linhas no cimento, um gato amarelo perfila-se a reivindicar veementemente uma qualquer coisa. Pela minha parca experiência concluí que, por vezes não importa muito o que se reivindica, porque o ato de reivindicar, por si só, pode ser uma verdadeira arte. E o bicho era, indubitavelmente, um artista. Tinha algo de exótico e abstrato que, com uma pincelada lírica, posso descrever como “uma certa pinta”. Ainda assim, e voltando ao que importa, não mostrava sinais de querer abrandar a contenda. Os nossos olhares cruzam-se e, nesse instante, o protesto parece agravar-se e torna-se pessoal. Não sei o que pensar, mas assumo o desafio e decido lançar-lhe uns fiapos de carne que sobraram do jantar. Ato consumado, após alguns lançamentos, os decibéis foram esmorecendo e o gato acabou, finalmente, por regressar à habitual vadiagem das ruas. Na noite seguinte e albergando o seu misterioso carisma, o processo repetiu-se. E na noite seguinte... e nas noites seguintes, até se tornar um hábito. Foi assim que conheci o gato amarelo e, como tenho uma imaginação prodigiosa, batizei-o de “Gato Amarelo”.

 

De quando em vez alterava a rotina, descia e deixava-lhe uma taça com ração a que ele só acedia quando me via longe. Nalguns dias, porém, a fome crescia mais que o medo e os seus critérios relativos a distâncias de segurança tornaram-se, gradualmente, mais flexíveis. Tanto que um dia - já haviam passado meses desde o primeiro contacto - consegui colocar-lhe a mão, provocando-lhe uma reação de choque que o catapultou numa espécie de salto quântico. Apesar do valente susto, nas semanas seguintes encarnou a raposa de Saint-Exupéry e, para além de comida, procurava um afago no pelo. O gato era esperto e aprendeu a reconhecer o som do carro. Assim que estacionava, após um dia de trabalho, ele emergia das ruínas da casa. Pelo menos até ao dia em que troquei de carro e tivemos que criar um novo sistema de comunicações. Não sei ao certo como começou mas, assim que chegava do trabalho, chocalhava o molho de chaves que transporto no bolso e ele aparecia. Trazia, por vezes, uma ou outra gata para o jantar mas, inevitavelmente, com o tempo - cedo ou mais tarde - desapareciam ou morriam. Desde os atropelamentos, aos envenenamentos, ataques de cães ou de outros gatos, as doenças, até às intempéries ou às noites em que o frio corrói os ossos. Não é fácil a vida de vira-lata. Houve dias a fio em que, também ele, não aparecia e o chocalhar das chaves não tinha a magia para abrir o portal do Universo da casa dos gatos.

 

Em 2014 a minha filha nasceu. Depois, com dois anos e esporadicamente, ia comigo até à garagem e, juntos, levávamos ração ao Amarelo. A Matilde achava-lhe piada e tentava agarra-lo pela cauda, obrigando-o a praticar manobras evasivas e exercícios de tolerância. Os anos foram passando e houve momentos – poucos - em que aparecia mais amolgado pelas contingências da vida. Nessas alturas, como um traidor, capturava-o e levava-o à veterinária da minha gata. Era resiliente e recuperava sempre para, de novo, voltar às ruas. Num desses momentos experimentei leva-lo para casa mas a sua identidade estava refém das ruínas e era mais forte que o conforto de quatro paredes e um teto. Deixei-o ir.

 

Passados mais uns anos, em que também eu não estava na melhor fase da vida, começou a adoecer e a aparecer com menos regularidade. Até que um dia, enquanto passeava com a Matilde, veio ter connosco, visivelmente debilitado. De uma forma displicente, amaciei-lhe o pelo e continuamos. Hoje, creio, foi a forma de se despedir. Desde esse instante, nunca mais o vi. Há portas que se fecham e nenhuma chave consegue abrir. Hoje embriago-me de melancolia porque não são apenas as ruínas da casa dos gatos que estão vazias. Pouco tempo depois estava a iniciar o processo de divórcio e a pandemia dava os primeiros sinais de que seria algo sério.

 

Deste lado da rua, teimo em não me render à condenação do tempo.

Casal

Fevereiro 20, 2023

casal.png

São curvas sinuosas,

a cama onde nos deitamos.

Ondas suaves e vigorosas,

em que ébrios mergulhamos.

 

São etéreas as colinas,

que escalamos e descemos.

Serpenteando danças felinas,

rumo a sítios que não sabemos.

 

Por estradas e descaminhos,

entre mistérios e exotismo.

Percorremos gigantes e moinhos,

misturamos realidades e quixotismo.

 

Somos um tórrido deserto.

Pouca é a flora que brota.

Eu: não sei quem sou ao certo.

Tu: és apenas e tão-só uma mota.

Chave

Fevereiro 07, 2023

key.png

Vivemos num pequeno abrigo.

Este é o meu mundo e tudo o que conheço está aqui.

Um espaço exíguo, sem janelas.

Do teto, cai uma velha lâmpada de tungsténio e baixo consumo.

Uma luz trémula, que dispersa algumas sombras e revela bordados de bolor.

Não é muito, mas tem o necessário para subsistir.

Quando me sinto triste, fecho os olhos e sonho com mundos de que ouvi falar.

Depois passa e, novamente, regresso às paredes.

 

Lá fora – dizem – há monstros que apenas conseguimos imaginar.

Contudo, uma porta de aspeto pesado, encerra-os do outro lado.

Apercebo-me que as mãos, transpiradas, seguram uma chave.

Sinto que, se a colocar na fechadura e rodar, posso destrancar o acesso.

É preciso coragem para o fazer e, suspeito, uma força desumana para empurrar:

são muitas as resistências da inércia e do medo do desconhecido.

 

Penso para mim:

"Ao fim de tanto tempo, para quê faze-lo?

Passaram tantos anos que já nem sei.

Para quê abdicar da segurança e do abraço deste meu aconchego?

O que poderei ganhar? Se sair...

Mas, por outro lado, o que poderei perder?

Serão os monstros reais? Uma profunda convicção diz-me que sim.

Mas e se, para além de monstros, existirem maravilhas monstruosas.

Sinto o abrigo, por vezes, como uma prisão.

Que mistérios me aguardam do outro lado?

Posso, sempre, deixar tudo como está.

Já tantas pessoas nasceram e morreram sem nunca abrir a porta.

Tantas que nem se aperceberam da chave ou, tão-pouco, suspeitaram estar fechadas.

E aquelas que se enganam e dizem ser livres sem nunca terem rodado uma chave.

São pequenos atalhos, em forma de armadilha, com que a prisão nos seduz. Para alguns, isso chega.

Talvez chegue para mim.

Posso não fazer nada e continuar a olhar para a velha lâmpada.

A sua luz, com certeza, me há-de bastar."

 

O abrigo é uma mente fechada.

A lâmpada é o ego, que nos permite ver um pouco, mas que tanto nos cega.

A chave é o conhecimento que - pode estar na forma de um livro - tem o poder de trazer luz e abertura de espírito.

 

Posso dizer-te que atrás de uma porta há outras portas e, atrás de outras portas, há ainda mais portas.

Mas, por cada porta que abres, cresces e alargas o teu campo de visão.

Nessa altura verás o quanto somos pequenos e o quão grande e maravilhoso é o mundo.

Posso dizer-te que - feliz ou infelizmente - não há atalhos, mas…

 

- Nas mãos seguras uma chave.

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