Assistência Técnica para a Alma
Maio 28, 2007
Por norma guardo o telemóvel no bolso esquerdo das calças. Aquela porra acaba por descair e aloja-se mesmo junto ao escroto. Com todas as radiações inerentes, se um dia tiver filhos, eles já vão, provavelmente, nascer com Bluetooth. Uma vantagem evolutiva que lhes irá conferir competitividade num mundo cada vez mais competitivo, segundo os padrões de Darwin. Mas adiante... Saco o telemóvel do bolso e procuro nos contactos a inscrição “Deus”. Faço a chamada e aguardo. Passados alguns segundos recebo a indicação de que o telemóvel se encontra desligado e ouve-se uma mensagem do Voicemail: “Olá, Eu sou Deus e, de momento, não estou. Para qualquer assunto deixe mensagem ou desligue e faça uma oração. A segunda alternativa fica mais barata e o efeito é o mesmo. Hello, I’m God and I’m away at the moment. For any Issue, leave a message or you can turn off the phone and start praying. The second alternative is cheaper and the effect should be the same. Bonjour, Je suis Dieu (…)”. Desligo. Para o que precisava, Deus era a entidade mais indicada.
(imagem retirada da internet)
Eu costumava caçar os meus próprios alimentos mas cansei-me de andar atrás de caracóis e agora, como toda a gente, quando preciso de alimentos vou às compras. Porém, quando uma loja está fechada ou somos mal recebidos, aproveitamos a poderosa lei do capitalismo, da oferta e da procura, para fazermos compras num outro local. Dessa forma “matamos” dois coelhos com uma cajadada: potencialmente seremos melhor atendidos e contribuímos para uma melhoria global do serviço, enquanto chateamos o comerciante que nos recebeu mal ou não nos recebeu. Ainda com o telefone na mão e dentro da letra “D”, desço um nome abaixo: “diabo” – Neste caso, até sabia o número de cor, porque “666” é de fácil memorização. Deus e o diabo são como multinacionais – mais até multiuniversais - que actuam no mesmo ramo, embora com especializações diferentes. São, em todo o caso, concorrentes e, para melhorar o serviço, decidi aplicar a lei da oferta e da procura. Marco o número e, passados alguns segundos, ouço no meu telemóvel uma voz sensual: “Bem-vindo ao Inferno. Para assuntos espirituais, prima 1. Para assuntos carnais, prima 2. Para ajuda de um operador especializado chamado Maya ou Bambo, prima 3”. Bem… parece que o chifrudo está a fazer um bom trabalho no campo do Customer Relationship Management (CRM) e, aqui para nós, o diabo nunca teve problemas em seduzir. Porque preciso desesperadamente de alimento espiritual, primo a tecla “1” e aguardo. A mesma voz debita mais um menu de múltipla escolha: “Você escolheu assuntos espirituais. Para comércio de almas, prima 1. Para bruxedos e feitiços corriqueiros, prima 2. Para bruxedos e feitiços especiais com sacrifícios humanos, de cabras ou de galinhas pretas, prima 3. Para possessões, prima 4. Para a Assembleia da República, prima 5. Para outros assuntos, ou para ser atendido por um advogado, prima 6”. Nesta altura primo 6 e aguardo: “(…)o tempo médio de espera para atendermos a sua chamada é de 6 minutos. Relembramos que 6 minutos é pouco tempo face à eternidade(…)”. Uma fracção da eternidade depois, uma outra voz faz-se ouvir:
- Inferno, boa tarde! Em que posso ser-lhe útil?
- Boa tarde. Eu estou a ligar porque tenho um problema que penso poder catalogar de “espiritual”.
- Muito bem… estou a ver. Tenho o prazer de estar a falar com… Já tem cartão de cliente?
- Não, não! Não tenho cartão de cliente. É a primeira vez que estou a ligar para aí e o meu nome é ejail. Para já não pretendia aderir. Gostava, primeiramente, de aferir da qualidade do serviço.
- Sr. Ejail, nós aqui no inferno, somos uma empresa certificada. Estamos certos de que, após experimentar os nossos serviços, se converterá num cliente habitual e ficará eternamente connosco. Mas qual é então o problema que o traz por cá?
- Bem… é que eu sinto-me triste, só e vazio. Não sei como, mas estas três coisas cabem todas dentro de mim…
- Hum… um pouco como a Santíssima Trindade…
- Não diria tanto... Trindade sim, mas não santíssima… um bocado por aí…
- É muito fácil para nós, empresa especializada e certificada, resolvermos o seu problema. Arranjamos-lhe já uma festa, uma Playmate e, quanto ao seu vazio, digamos que lhe podemos encher os bolsos com um jackpot do Euromilhões.
- Uau! Hum… mas espere… e acha que, com isso, eu fico bem?
- É garantido! Só tem de fazer uma coisa primeiro.
- Sim, sim! O que é que tenho de fazer?
- Tem que nos vender a sua alma. Hoje em dia é um processo de muito fácil concretização. Só tem que ir ao eBay e colocar um anúncio. “Alguém” a vai comprar. Mas pode também, se preferir, enviar a sua alma por transferência bancária no multibanco.
- De facto, vocês ai no inferno, estão a trabalhar bem. Parece tudo tão fácil e a alma é algo que não parece fazer falta nenhuma no dia-a-dia. Se ninguém me dissesse que tenho alma, provavelmente nem sabia que a tinha. Mas não sei… vamos fazer assim: Vou tirar um tempo para reflectir e depois digo qualquer coisa…
E desligo.
Aquela coisa da alma… Aqui a atrasado estive a comparar-me a uma caneta e não via grandes diferenças. Era uma Bic… Não sei quase nada sobre a alma e pergunto-me se não será ela, a alma, a responsável por eu não ser “inanimado” como a caneta? Mas não sei… se estivesse a reparar um Boeing e visse um parafuso, e não soubesse para o que servia, acho que não o ia tirar…
Talvez, aproveitando um buraco na lei, eu consiga obter aquilo que pretendo e ficar com a alma. A lei diz que posso assinar um contrato e é-me concedido um período de carência em que posso voltar atrás. Portanto, a ideia seria vender a alma ao diabo, fazer a festa, fornicar a Playmate e ganhar o Euromilhões. Consumados os benefícios vou, num ápice, arrepender-me junto de Deus. Claro que há sempre coisas que podem correr mal, como por exemplo: Deus estar sem rede no telemóvel... Mas já pensei em tudo. Vou ligar a Deus de uma igreja, porque lá têm mais rede. Se, ainda assim, Deus não me atender, posso sempre tentar comprar uma outra alma que esteja para venda no eBay…
Não é fácil aplicar o sistema chinês ao capítulo espiritual. Um país e dois sistemas, versus, uma alma e dois deuses. Não é fácil e não sei se é viável. Ninguém pode andar muito tempo em cima do muro, algum dia há-de cair para um dos lados. Portanto, para evitar todas estas complicações, o melhor é manter o telemóvel junto ao escroto, não acreditar em Deus, não acreditar no diabo e não acreditar na alma. Talvez o melhor seja mesmo continuar a sentir-me triste, só e vazio.
“A grandeza da oração reside principalmente no facto de não ter resposta, do que resulta que essa troca não inclui qualquer espécie de comércio” - Antoine Saint-Exupéry.
Atentamente,
ejail.